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25/10/2021 às 17h48min - Atualizada em 25/10/2021 às 17h25min

Masculinidade tóxica afeta a identidade dos homens e a visão sobre o feminino

A visão do "homem de verdade" que vai contra a sensibilidade e o sentimentalismo colabora para a manutenção do sistema machista e de homens que não se conhecem.

Isabella Leandra - Revisado por Isabelle Marinho
(Foto: Reprodução / Justificando)
A masculinidade tóxica é um problema ainda pouco falado fora de algumas bolhas e, assim, merece uma atenção especial. Falar sobre como esse sistema que cria homens para serem insensíveis, agressivos e aversivos à figura feminina acaba agregando a uma opressão não somente às mulheres, mas também à identidade de cada homem, que desde a infância tem suas emoções reprimidas em nome de uma “masculinidade alfa”.

A escola do opressor

Desde o início das discussões feministas, o foco sempre esteve ligado ao efeito do patriarcado na vida das mulheres. Tal premissa é obviamente válida, visto que as mulheres são quem mais sofrem em tal sistema de opressão. Entretanto, dentro do mesmo sistema, a grande maioria dos homens é ensinado desde a infância a serem a figura do opressor e, nisso, entram diversos outros fatores que acabam apagando e invalidando a identidade de cada um.

É possível citar, por exemplo, a resistência à sensibilidade (famoso “homem não chora”), pressão para negar coisas socialmente ligadas ao feminino, tais como os cuidados com a casa e os filhos, resistência a consultas médicas e exames de toque (como no exame preventivo do câncer de próstata) e muitos outros comportamentos e ensinamentos que prejudicam uma construção igualitária entre homens e mulheres. E não apenas isso, como também uma construção que faz com que eles sejam a figura de opressão.


A psicóloga e mestre em Comunicação Social, Marcelle Primo, aponta que no contexto latino-americano, pode-se observar que a noção e prática social definidos como masculinidade estão ligados a alguns pontos, tais como a expressão de sexualidade proativa, violência, defesa da honra e ideia de “protetor”.

“A partir desse cenário, vivenciamos práticas culturais cotidianas, homens que são, supostamente, potentes e ativos na vida sexual, com atitudes violentas para imposição de poder, provedores e que esperam que as mulheres estejam à sua disposição seja para fazer o café da manhã, lavar a roupa, ato sexual, entre outros. Esse é o jeito que muitos homens entendem que devem ser homens”, expõe a profissional.

Dessa forma, as pressões relacionadas ao que foge do que é digno de um homem, o que acontece é justamente a manutenção do sistema machista. Pensando nisso, a sociedade acaba criando homens que reprimem os próprios sentimentos, não conhecem a si mesmos e não são capazes de criar afeto com outros do mesmo gênero. Isso ligado ao fato de que, caso contrário, não seriam homens de verdade e com masculinidade desejável. A violência contra a mulher está diretamente relacionada a essa socialização, visto que, conforme mencionado pela psicóloga, um dos mecanismos de provar tal virilidade é “mostrar quem está no poder”. Consequentemente, a violência acaba sendo a única resposta a que são ensinados.

Vivências e experiências

Desde a infância, os meninos são ensinados sobre a violência do mundo e o pensamento de dualidade que divide heróis e vilões, bem e mal, vencedores e perdedores. Desse modo, para conquistar seus objetivos e resgatar a “princesa”, os homens acabam reproduzindo um ideal constituído por estereótipos masculinos associado à coragem, força e virilidade.

Ao analisar a masculinidade tóxica no âmbito da socialização masculina, Marcelle ressalta que em determinados contextos sociais, os homens acabarão tendo reconhecimento de uma boa reputação. Isso acontece, pois, ser e agir desse modo, pode configurar certo valor para aquele grupo. Você ganha respeito e credibilidade entre outros homens.

Pensando nas diferentes formas que a visão da masculinidade perpassou no decorrer dos anos, é possível notar como o tema é mais frequente e pensado entre os homens das últimas gerações. Mas, ainda assim, restam rastros de uma construção masculina que não se reconhece ou é incentivada a isso.

Almir Lima, de 60 anos, conta como as experiências, visões e reflexões acabaram sendo decisivas para sua construção pessoal como homem. Ele reconhece que o machismo sempre existiu nas culturas sociais, e que está associado a essa inflexibilidade na evolução da sociedade e do interior de cada um.

Para ele, é importante pensar na construção pessoal individual e coletiva e como certos pressupostos e cobranças acabam refletindo nos pensamentos e vieses pessoais. “Os ‘comportamentos enraizados’ são reflexos do passado individual de cada um, que provavelmente passou muito tempo de sua vida restrito ou cobrado dentro do contexto familiar ou social”, salienta.

Ele ainda lembra como a imaturidade do pensamento de “homem de verdade/ homem de mentira” acabou gerando certas pressões, e ressalta que “um homem de verdade evolui com o passar do tempo e respeita opiniões adversas”. Assim, Almir levanta que sua construção pessoal é baseada em respeito e evolução de como encarar a sociedade atual, respeitando cada um tal como é.

Enquanto isso, João Vitor Brito, de 19 anos, conta sobre a dificuldade “mortal” que tem sido seu processo de desconstrução diária. O estudante de Filosofia relata que seus conflitos relacionados principalmente à sexualidade, já bate de frente com a premissa de que o homem não deve hesitar, e assume que a trajetória não é fácil. “Isso dificulta muito quando preciso agir com mais empatia, paciência ou amabilidade, porque não faz só com que eu não seja validado como um homem pelos outros, como também faz com que eu mesmo me questione por completo”, completa o jovem.

Ao relembrar as pressões da masculinidade, João salienta o quanto isso afetou sua construção pessoal e comportamentos, gerando inclusive uma autossabotagem. “Tudo que sou enquanto homem vem do que aprendi de outros homens. Ser dono da verdade, reativo, passivo-agressivo, impaciente, e, dependendo do caso, até violento, é normal se for pra poder me impor e ser validado nesse mundo”. Admite o estudante. “Isso destruiu minha mente de garoto, porque eu tinha que ser assim, e não gostava”, completa.

Por fim, Brito relata que sua auto-conexão veio quando já estava maior. Ali, ele passou a ir de encontro com o que acreditava e sem tantos receios, principalmente com a ajuda de animações como “Steven Universo” e “Hora de Aventura”, que lhe ensinaram como o amor pode ser muito mais revolucionário do que o ódio. Por fim, aconselha: “Se essa entrevista vai chegar em homens como eu, queria deixar aqui um conselho: se permita sentir.”


Novas visões da masculinidade

Com o crescimento das discussões sobre as problemáticas do machismo estrutural e a masculinidade tóxica, muitas mudanças ocorrem na visão sobre o que é ser “um bom homem”.

Homens como Rodrigo Hilbert e Terry Crews se tornaram referência de homens que, mesmo inseridos numa estrutura patriarcal, vão de contramão e são ovacionados devido a comportamentos que fogem do antigo ideal de “homem provedor - mulher cuidadora do lar”. Marcelle aponta que a brincadeira dada a Hilbert funciona como um indicativo de que o valor de um homem agora é medido através de novos atributos além da sexualidade, violência e poder. “Os homens estão sendo convidados a se manifestarem com outras masculinidades”, complementa.


A psicóloga ressalta que tal convite acaba implicando numa participação efetiva e presente na conduta ética e moral da criação de filhos e filhas. “O conhecimento liberta das ignorâncias e possibilita maior criatividade para lidar com padrões menos cristalizados”, lembra.

Além disso, é importante reconhecer que o exemplo dado em casa são os primeiros contatos das pessoas com o mundo, e isso reflete nos nossos pensamentos, ações e comportamentos, ressaltando assim o papel da família na orientação de um fundamento de homens mais participativos e menos tóxicos.

Por fim, Marcelle ressalta a necessidade de uma escuta acolhedora para com meninos e homens para desconstrução de tais estigmas, “assim eles podem entender sobre os processos mentais e conflitos interiores, ante os imperativos contemporâneos de como devem agir e o que devem fazer com seus respectivos falos”, conclui a psicóloga.

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