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31/10/2021 às 19h53min - Atualizada em 30/10/2021 às 21h37min

Do pico ao fundo do poço | Filme Curupira, o demônio da floresta reacende discussões sobre liberdade criativa

Ivan Fercós - Editado por Marcela Câmara
A repercussão diante do lançamento do primeiro filme de terror produzido no estado do Maranhão, Curupira: o demônio da floresta, começou mesmo antes de sua estreia nos cinemas. Após a divulgação de seu trailer e banner oficial, a equipe de produção vem sofrendo represália de internautas e representantes jovens do povo indígena nas redes sociais. As pessoas acusam a produção do longa de praticar o embranquecimento de tradições e lendas dos povos originários, tornando uma figura mítica do nosso folclore, um ser livre, protetor dos animais e florestas em um ser irracional, violento e sanguinário.
 
O projeto assinado por Erlanes Duarte conta com a distribuição da O2 Play, produção da Raça Ruim Filmes e Lengo Studius e coprodução da Guarnicê Produções, nunca teve o objetivo de ser uma representação fiel do personagem, e sim um recorte da história, apresentando o lado "sombrio", dentro de um contexto de filme slasher - um sub-gênero de terror que quase sempre envolve assassinatos sangrentos. Na trama, seis jovens vão fazer um passeio em uma ilha e passam a serem perseguidos pela criatura, após jogarem lixo na praia e fazerem uma tartaruga de bola.


 
Fazer um recorte ou uma releitura de uma mesma história é bem mais comum do que se imagina na América Central e Europa. Sem espaço para controversas ou tanta movimentação, isso talvez se deva ao fato de que nesses continentes as pessoas procuram saber mais sobre suas raízes históricas e se interessam verdadeiramente pela sétima arte. O que a certo modo ajuda a diminuir os ruídos entre identificar a adaptação e sua versão original.
 
Em solo brasileiro, assumir a “crueldade” de Curupira trouxe o questionamento para criativos e roteiristas do país, a de quais são os limites para a liberdade criativa em tempos de cancelamento virtual e “lugar de fala”. Haja vista, que nem sempre às duas partes estão dispostas ao diálogo. O lado que acusa é detentor da verdade e o lado acusado não assume que errou. Impossível saí algo bom em meio a este caos.
 
Uma certa vez um sábio me disse, que a mentira quando bem contada várias vezes assume o lugar da verdade, sendo quase que impossível distinguir qual é, qual. Todos nós fomos vítimas de um sistema ancestral articulado. A qual a cultura do “homem branco” recebe uma carga de superioridade, enquanto os rituais e crenças dos povos originários colonizados sofrem com o apagamento histórico, modificados a benefício do seu desbravador, ou até desaparecerem. O perigo da história única ao longo dos anos é mais danoso do que se imagina. A comemoração do Natal ou dançar capoeira, são bons exemplos.
 

Origem da lenda
 
Conforme os livros de história mostram, a lenda do Saci surgiu no final do século XVIII, enquanto a lenda do curupira já era conhecida dos portugueses desde o século XVI, sendo o primeiro a citá-la o padre jesuíta José de Anchieta, em São Vicente no ano de 1560. Outro relato, foi o do padre João Daniel, em 1797, narrando as terríveis consequências de se encontrar frente a frente com o curupira.
 
Desde os tempos de escola aprendemos somente aquilo que os europeus, em seus manuscritos queriam que a população da época soubesse. A maioria das crônicas são datadas do período da colonização, onde apenas membros da igreja, monarquia e algumas pessoas com posses sabiam ler, sendo a lenda transmitida por populares usando o velho ‘boca a boca’, o que explica em parte as suas variantes. A versão mais difundida pelos cronistas cristãos é a de que o curupira:

 
  • Também é conhecido por “demônio da floresta”. Ele assobia e utiliza muitos sinais, as histórias que o envolvem sempre carregam muito mistério e são inexplicáveis, desde o desaparecimento de caçadores bem como até o esquecimento dos caminhos;
 
  • Com seus pés virados para trás, engana e confunde as pessoas que danificam as florestas, tendo os caçadores, madeireiros, lenhadores como as suas principais vítimas;
 
  • Esse personagem folclórico não gosta de locais muito movimentados e, por esse motivo, prefere viver entre os animais e as matas das florestas.
 
Largar pelo caminho muitos cipós trançados pode ser uma solução. O menino dos pés virados vai parar para tentar desmanchar os nós dos cipós, e, com isso, a pessoa ganha tempo para fugir de sua vista. Se não tiver cipós, vale deixar cruzes de madeira, que ele também vai tentar desmanchar - tem algo mais cristão do que impor cruzes, símbolo de sua fé, como defensa aos ataques de um ser encantado dito como pagão.
 


Nos contos portugueses, esse personagem esteve associado a muitos casos de violência, abusos sexuais, rapto de crianças e horror psicológico. Capaz de enfeitiçar as crianças, as raptava e somente depois de sete anos elas eram devolvidas aos pais. Criando a fama de mau espírito, disposto a assombrar as noites dos índios e dos bandeirantes. Entretanto, como qualquer outra divindade de sua ‘religião’, os índios acreditavam e respeitavam tanto o curupira que muitos, quando iam entrar na floresta, prestavam oferendas para garantir proteção.

A dualidade do personagem é escancarada, protetor dos animais e florestas, e perverso, assim queira. Até em contos do cristianismo somos agraciados com figura de Deus, um ser sublime e de amor supremo, no entanto, destrutivo para àqueles que decidem sair debaixo de seu manto de regras (seus mandamentos) e crenças (os bons costumes). Reconhece esse roteiro de algum lugar. Converter cada mais novos adeptos a sua fé usando o medo. E assim foi ao longo da literatura nacional, o “homem branco” descreveu como demônio ou práticas demoníacas tudo aquilo que divergia da sua forma de pensar e agir, por acreditar que não pode existir outros seres divinos além de seu Deus.
 
Em paralelo na atualidade, jogar a culpa em uma obra ficcional e sua equipe, seria uma alternativa mais assertiva, senão fosse a carga histórica em volta do racismo religioso antes da criação do longa. O fato é o filme não tinha nenhuma pretensão em discutir temas político-culturais, mas acabou dando a sua contribuição a movimentos por respeito e igualdade aos povos originários, reacendendo o interesse em saber mais sobre os costumes e crenças indígenas, que acabaram sendo reduzidas a contos do nosso folclore. A arte continua sendo espaço para reflexão.
 
 

REFERÊNCIAS:
 
TORRES, BOLÍVAR. Filme de terror 'Curupira - O demônio da floresta' é acusado de 'racismo religioso' após divulgar trailer e pôster. O Globo. 18 de out. de 2021. Disponível em: >https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/filme-de-terror-curupirademonio-da-floresta-acusado-de-racismo-religioso-apos-divulgar-trailer-poster-25241299 <. Acesso em: 25 de out de 2021.
 
MANS, MATHEUS. Crítica: 'Curupira: O Demônio da Floresta' é constrangedor de tão ruim. Esquina da Cultura. 25 de out. 2021. Disponível em: >https://www.esquinadacultura.com.br/post/critica-curupira-o-demonio-da-floresta-e-constrangedor-de-tao-ruim<. Acesso em: 25 de out. 2021.

 
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