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14/06/2022 às 23h40min - Atualizada em 13/06/2022 às 09h48min

Descoberta e processos artísticos de uma artista em desenvolvimento

A artista cuiabana Tamii explora em suas obras diferentes materiais e aspectos da vida urbana que misturam real e fantasioso

Mariana da Silva - editado por David Cardoso
Tamii e suas artes. (Foto: Mariana da Silva).

Tão difícil quanto definir e compreender o sentido da vida, é definir a arte, uma vez que possui diversas interpretações e compreensões diferentes, tanto coletivas quanto individuais. Compreender seu corpo e seu lugar na Terra é uma missão que muitas pessoas passam a vida buscando, e foi na arte que a artista Tamii, cuiabana de 22 anos, se descobriu.

Tamii é Vitória Tami Gondo Lage, uma jovem artista plástica, tatuadora e performer, que vem construindo seu espaço no cenário artístico cuiabano, mas principalmente buscando se conhecer através da arte e dos processos produtivos e criativos envolvidos nessa jornada.

A arte entrou em sua vida muito cedo. Na infância Tamii conta que via as amigas indo a psicólogos e queria ir também, pois achava que precisava de alguma forma. Ela foi. A psicóloga pediu então que desenhasse e ela assim fez. O resultado: um desenho extremamente detalhado, com uma casa de tijolos, os quais ela desenhou cada um, com um cercado ao redor, plantas, árvores, um ninho com passarinho aguardando a mãe que voava com uma minhoca no bico. “Uma criança detalhista e sistemática”, ela mesma descreve. Sua mãe guarda até hoje e conta essa história para ela.

Crescer na arte

Foi incentivada desde nova a entrar no mundo das artes: fez aulas de pintura, piano, violão, violino e tudo o que podia em música. São suas primeiras memórias, tanto em música quanto em artes plásticas. Nessas memórias os pais estavam presentes e sempre a incentivaram a buscar a arte dentro dela, com a intenção de desbloquear várias coisas. Quando pequenos seus pais também tinham essa vontade de fazer violão e pintura, o que pode ter motivado que depositassem essas vontades em Tamii, que era capaz disso e sempre foi incentivada a continuar.

Inicialmente, ela diz que não levava tão a sério o seu lado artístico, até o momento em que teve de prestar vestibular, pois pensava que queria ser médica. Porém, percebeu que em todas as aulas no ensino médio não conseguia prestar atenção, estava sempre desenhando com os lápis de cor. “Eu estava explorando minha arte de um jeito que a escola não incentivava. Percebi que essa necessidade de fazer arte era maior que qualquer curso e qualquer vida que eu levasse”, conta.


Apesar da pouca idade, seu currículo artístico já possui muita bagagem e experiência. Cursou Artes Visuais em Belo Horizonte na UFMG, entre 2017 e 2018, algo que segundo ela foi uma conquista muito grande, tanto para ela quanto para sua família. Participou da exposição DERIVA, dos estudantes da Faculdade de Belas Artes da UFMG em 2018. No entanto, não se adaptou a morar sozinha e voltou para Cuiabá, sem finalizar o curso.

Mais adiante, em 2019, foi para São Paulo, cursar na Faculdade de Belas Artes e acabou retornando a Cuiabá pois estava com a saúde mental debilitada. Esteve também na EXPOARTE, em 2020, na galeria ARTLABGALLERY, em São Paulo, e participou de várias exposições. Participou ainda da residência online Casa Corpo em 2021. Entre idas e vindas, de volta a Cuiabá, fez 3 semanas no curso de Psicologia na UNIVAG em 2020, e depois ingressou no curso de Gestão Comercial na UNIVAG em 2021, ambos também não finalizados. Estes dois últimos cursos, que nitidamente destoam da sua personalidade, foram diferentes tentativas de se encontrar, mas foram em vão, pois a arte sempre a chamava de volta.

Os bitukeiros

Criadora dos personagens intitulados “bitukeiros”, que buscam liberdade para serem eles mesmos, Tamii busca compreensão de mundo através de sua arte. Sentir algo, ainda que seja um desconforto, para fugir de sua apatia.

Desde 2014, quando ainda estava no ensino médio, começou a pintar palhaços. A partir dali eles foram crescendo e virando figuras, os bitukeiros. Cada um deles faz parte de um momento do seu dia, da semana e da vida. Transmitem seus sonhos, as coisas que vê e sente. “São seres livres, sinto que na minha cabeça tenho vários tipos de vozes que conversam comigo, parece que é uma praça de alimentação de bitukeiros na minha cabeça”, ela descreve.


Através deles, ela tenta expandir e transmitir sentimentos dos mais diversos: agonia, perturbação, ironia, alegria, tristeza, todos os sentimentos possíveis que o ser humano pode transmitir em uma arte, em cada quadro. Cada um destes seres únicos possuem características muito distintas e pessoais, compostos de diferentes corpos em diferentes situações.

Para Tamii, eles são reais e a necessidade deles é simplesmente entender o desespero de existir e de ser eles mesmos, de estarem aqui presentes e materializados dessa forma:  “Quando saem da minha cabeça eles tem um universo para cultivarem e entenderem que é o mundo aqui fora. Como eles podem sobreviver aqui, ser eles mesmos nesse mundo caótico”.

Muito expressivos e até hipnotizantes, os bitukeiros são marcantes, é impossível ver uma arte de Tamii e não notar seus traços. O destaque para a cabeça, mas principalmente os olhos, a boca grande e os dentes dos bitukeiros, que quase saltam para fora da tela. O corpo colorido tem presença e movimento, contorcimento. Diferentes texturas, camadas, materiais fazem parte de toda uma pesquisa para transmitir os sentimentos da forma mais expressiva possível.

“Eles tem essa questão do grito, da agonia, a busca e descoberta para si mesmo. Essa busca eterna que todos nós temos envolve um grito interno ou externo. Eu sou uma pessoa que não consegue gritar fácil. Eu acho muito difícil gritar. Então é como se eles gritassem por mim. É como se essa praça de alimentação na minha cabeça estivesse gritando quando desenho”.


Há ainda os bitukeiros em 3D, por assim dizer. Peças em cerâmica que Tamii produz com a finalidade de cinzeiros, ou mesmo enfeite, onde as obras até então planas nas telas ganham vida e formatos. Geralmente cabeças, bem ao estilo de Tamii. A cerâmica foi uma tentativa de colocar os desenhos em 3D e criar uma vida diferente para eles.  Dar um nova utilidade, seja copo, máscara ou cinzeiro, mas permanecem sendo bitukeiros.

Questionada se teria alguma obra preferida, ela é incisiva: “Não tenho obra preferida, gosto de uma, depois outra, e outra, não gosto muito de uma só, respeito todas como foram construídas e como estão”.
 
Elementos e composição
 
Em suas telas, em primeiro plano, o destaque fica para os bitukeiros, diferentes, exagerados, coloridos, se contorcendo. Ao fundo os prédios altos e aglomerados compõem os cenários urbanos. Os traços fortes e bruscos, passam aspereza e uma intensidade, com diferentes camadas e texturas. A vida urbana de fundo, quase sempre cinza e apática do concreto, representa o que envolve o cotidiano frio e apressado de uma capital.

Tamii, que já morou em várias capitais, sabe bem como a vida urbana é agitada. Cuiabá, Belo Horizonte e São Paulo, representam estes cenários, com muitos prédios e pouca natureza. Lugares de caos interno e externo, nas vidas que ali circulam e nos ambientes, onde se cruzam e existem todos no momento. Ela confidencia que não sente muito a ligação com a natureza por conta da vivência nestes lugares, “sinto isso como um vazio dentro de mim, preciso buscar um pouco mais a natureza”.

Ela narra que estar em Belo Horizonte a influenciou na construção dos personagens e na trajetória deles, na descoberta como artista e possível pessoa que cria mundos. Já em São Paulo, trouxe a ela o desespero de existir, uma cidade grande e caótica que engole. Cuiabá, como sua cidade natal, trás o sentimento de pertencimento, ainda que em meio ao caos e desordem, onde sente um pequeno momento de plenitude. Questionada sobre qual das cidades representaria este pano de fundo para suas telas, ela diz: "Não existe uma cidade exata, mas é uma cidade que engole você e tanta coisa em volta”.

Os lugares em que já esteve, sempre a influenciam. Basta uma caminhada no centro para imergir em seu imaginário toda uma construção artística inteira. Sensitiva e observadora, aproveita os lugares em que está e tem a oportunidade de conhecer e aconselha: “Uma das coisas que a gente tem que ser na vida é ser observador e entender o espaço que nosso corpo está habitando naquele momento”.

As narrativas de caos, perturbação, entendimento e corpo, contam histórias de uma artista em descoberta, algo que pode fazer com que muitas pessoas se identifiquem e tentem ser elas mesmas. As cores muito fortes, com muita presença, tentam fazer o preenchimento do vazio. Cada ser tem uma pele, uma parte do universo, que juntando todos fazem sentido nessa busca, que é transmitida pela cor, pela pincelada, pelo exagero de tinta, ou como Tamii diz “viver é um exagero”.
 
Desenvolvimento e processo criativo
 
Algumas de suas inspirações artísticas ela busca em pastas no Pinterest, onde salva elementos que ajudam em seu processo. Sua arte conversa muito com a de outros artistas, dentre os principais se destacam, Jean-Michel Basquiat, Samuel Sabóia, e Rafaella Braga.

Mas não pense que só de tinta vive a artista. Pano, bitucas, caixas de cigarro, papel crepom, recortes e colagens de jornais, revistas, poemas, papéis, esses são apenas alguns dos outros materiais utilizados nas obras. Seu estilo lembra muito os muros e paredes das capitais onde em meio a desenhos, grafites, colagens de panfletos, rompem com a degradação da arquitetura caótica e constroem o visual urbano.

“As texturas são importantes para trazer a narrativa do asqueroso, curioso, vontade de pegar e comer. Olhar para algo que eu fiz e se eu gostei mesmo eu sinto que tenho vontade de comer. Pode ser uma loucura, mas sinto essa vontade de engolir e ter em mim novamente. A mastigação como um processo também expõe o lugar que estão e vivem naquele momento, de forma viva.”


As diferentes fases da vida e lidar com o turbilhão de sentimentos e sensações também é parte do processo. “Sempre é uma influência de tudo o que acontece na minha vida e principalmente na minha cabeça. Sempre estar em luta contra depressão, ansiedade, ter acolhido o diagnóstico do meu TDAH, isso traz claramente as fases dos desenhos e processos meu por anos”.

A música faz parte das criações, com ela, Tamii potencializa a vinda dos personagens até a arte em seu processo de criação. A presença do punk soviético e outras músicas instrumentais levam à tona os sentimentos de melancolia e outros que afloram naquele momento. Também ouve podcasts de poesia que ajudam a expressar as palavras quando escreve nos quadros ou encontra em livros: “Às vezes coloco frases e tiro de novo. São frases espontâneas em garimpos que faço em livros, caixas de papelão que acho, livros de poesia, revistas, algo que possa trazer questionamento para quem olha”.

Para ela, “a arte não é dom, é exercício e processo". Tentar se descobrir, ir testando, não importa se dê certo ou errado, tentar encontrar os traços, as cores, descobrir a própria arte faz parte do processo. A quantidade de desenhos que fez desde criança e continua a fazer a ajudou nessa caminhada para se descobrir.
 
Perspectivas para si e para o cenário artístico
 
Para Tamii, a arte em Cuiabá está crescendo bastante, mas compreender essa arte local foi tardio e descobriu a pouco tempo o movimento artístico e cultural que já existia, pois até então pensava não ser possível viver de arte na capital. Hoje ela vê que mais que possível, existem meios que possibilitam essa descoberta e apoio artístico: “Tem muitas pessoas, ideias, exposições e editais que fazem possível ser artista em Cuiabá. [...] A essa vontade não é só sua, é de muita gente que abraça todo mundo. A cena cultural se abraça, mesmo com diferenças, porque todos só querem viver de arte”.

Quem anda em Cuiabá e se informa minimamente, é notável presenciar em diversos locais a efervescência artística ocorrendo na capital. Shows, peças teatrais, rodas de música e de rima, exposições de artes plásticas, de objetos históricos, feiras culinárias e de artesanato, de cultura tradicional e contemporânea o tempo todo se cruzando e andando lado a lado, o passado e o presente. É visível que a cidade pulsa a todo instante novas cores, movimentos, ritmos.

Sobre as perspectivas para si e para sua arte, ela finaliza: "é entender erros e acertos, processos da vida, caóticos e mutações. Entender que a arte sempre acompanha os processos, seja na pintura, tattoo, cerâmica, cenografia e figurino no teatro. Viver de arte é difícil, mas quando você bota a cara no Sol e faz o seu ter o mínimo de reconhecimento, é possível entender que é uma boa perspectiva”.

Para acompanhar o trabalho de Tamii nas redes sociais acesso o link aqui.


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