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17/04/2023 às 21h16min - Atualizada em 17/04/2023 às 21h11min

"Noites em Claro" evidencia potência do cinema de periferia

Curta-metragem independente, realizado no bairro Bom Jardim, em Fortaleza, chega ao festival de cinema Curta Taquary e sai vitorioso em três categorias.

Júlia Vasconcelos - revisado por Joyce Oliveira
Registro dos bastidores de 'Noites em Claro'. (Foto: Reprodução/ Instagram - @noitesemclarofilme)
O filme “Noites em Claro”, dirigido por Elvis Alves, entrou na 16° edição do festival de cinema Curta Taquary este ano e venceu a categoria de Melhor Filme, além de outras duas. O curta-metragem foi realizado como trabalho de conclusão do curso Extensivo em Audiovisual da Escola de Arte do Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), em 2022.

Em março deste ano, dentro do já mencionado festival de cinema pernambucano, o filme foi exibido na mostra Curtas Fantásticos, quando contabilizou também vitórias nas categorias de Direção de Arte, assinada por Baruque Texeira, e Som, por Lucas Coelho e Robson Araújo.

"Noites em Claro" foi realizado de julho a setembro de 2022. Em outubro do mesmo ano, o filme teve sua pré-estreia no histórico cineteatro São Luiz, em Fortaleza. No mês seguinte, o curta de 19 minutos também foi exibido no Cinema do Dragão do Mar, espaço cultural importante da cidade.


Entre as exibições do filme, o Centro Cultural Bom Jardim não podia ficar de fora. Afinal, o equipamento de cultura foi fundamental na realização do “Noites em Claro”, já que o projeto é fruto de um percurso formativo: o curso de audiovisual do CCBJ, conforme reitera o produtor do filme, Ricco Sales. Além de ter sido exibido no próprio Centro Cultural, as exibições citadas foram articuladas pela coordenação do curso.

O equipamento cultural do Bom Jardim canaliza formações e eventos culturais pensados para o território do Grande Bom Jardim. O "Noites em Claro" é um produto que comunica e que resulta do propósito da instituição; formar jovens e fazer arte sem sair do Bom Jardim.

Nayana Santos, assistente pedagógica da Escola de Cultura e Artes do CCBJ que integra a equipe de coordenação de Audiovisual, contou que algumas crianças da vizinhança ficaram curiosas durante as gravações e, acolhidas pela equipe do filme, surpreenderam-se ao saber que estavam testemunhando cinema sendo feito pertinho de casa. "Esse momento ressoa no trabalho do CCBJ quando crianças e adolescentes descobrem que podem fazer um curso de Audiovisual no próprio bairro", declara.

A história por trás da estória

A ideia de contar a história de Carlos (Éricles Carmo), um entregador de pizza assombrado pela aparição de seres sobrenaturais, cuja trilha sonora é o som da sirene policial, nasceu com o módulo de roteiro do curso, ministrado por Cíntia Lima. "Com a metodologia do módulo e incentivo da professora, eu consegui evoluir a ideia até um argumento e tive que fazer um pitching", conta Elvis, que já tinha vontade de fazer um filme que tivesse como protagonista um entregador de comida.

 
 
Teaser do filme 'Noites em Claro'. (Vídeo: Reprodução/ Instagram - @noitesemclarofilme)

Na época, as aulas eram remotas e Elvis as acompanhava enquanto se deslocava de ônibus da empresa onde trabalhava como publicitário para casa. Para apresentar o pitching, o cineasta ligou a câmera e o microfone do celular e expôs a ideia da sua história para a turma e, indiretamente, para os passageiros a sua volta. Foi assim que o "Noites em Claro" começou a tomar forma, até ser selecionado como um dos projetos de conclusão do Extensivo.

O financiamento do projeto ocorreu por intermédio da coordenação de Audiovisual do Centro Cultural, mas não só. A fim de conseguir arrecadações que cobrissem os custos necessários para a execução da obra independente, Ricco e Elvis, junto à equipe de produção do filme, criaram uma rifa online para complementar o orçamento.

Um produto cinematográfico que traz consigo as características de ser periférico, nordestino e independente costuma sofrer com a escassez de investimentos e com o difícil acesso às políticas públicas voltadas à produção audiovisual. "O 'Noites em Claro' é a prova de que com pouco dinheiro a periferia entrega um trabalho bom e bem feito, imagina se fosse [feito com] um investimento maior", afirma Ricco.

O curta-metragem de terror se serve do gênero para fazer uma crítica social relacionada à opressão policial incidente no Bom Jardim, onde o projeto foi realizado. A equipe também é majoritariamente formada por residentes do bairro de periferia da capital do Ceará.


Segundo o diretor, o curta é uma tentativa de explorar um medo característico de jovens da periferia, sobretudo jovens negros. Entusiasta do cinema de terror, Elvis buscou levar o espectador à experimentação do temor e da tensão através do horror e, já que relaciona a própria realidade a tudo o que escreve, sua experiência enquanto morador de periferia inevitavelmente seria impressa na obra. "'Noites em Claro' é, em suma, um filme que visa denunciar a lógica racista e assassina de como a necropolítica atua sobre as periferias", defende.


No enredo, os moradores do bairro estão à mercê do toque de recolher da polícia, anunciado pela youtuber/radialista Da Quebrada (Amanda Freire). Carlos, que também batalha pelo seu ganha-pão durante a noite, vive sob a tensão dessa ronda da polícia. Por ser um jovem negro, o personagem teme tornar-se alvo de violência policial.

“O problema, seu Romeu, é quando eles [a polícia] decidem que nós somos os vagabundos”, a fala do protagonista ao personagem Romeu (Rafael Rodrigues) sublinha a denúncia trazida pela obra.



Os lugares nos quais a história do “Noites em Claro” se passa são de grande importância na construção narrativa do filme, uma vez que o espaço é constituinte do enredo e da crítica social embutida ali. Além da denúncia que o produto carrega, a mensagem presente no subtexto é: este filme é da periferia e, aqui, também se faz cultura.

Não é à toa que a obra conta com três locações e todas elas são localizadas no Bom Jardim/Granja Lisboa, embora este nome não seja mencionado explicitamente ao longo do filme. Uma dessas locações é a pizzaria da família de Elvis, que, além da direção, assina também o roteiro do filme.


No espírito da estética de periferia expressa para além do discurso, o set e a base de gravação ficaram situados na rua Dandara Ketley. De acordo com Nayana Santos, o local foi cenário do assassinato da travesti cujo nome foi emprestado à rua. "[...] conseguiu de certa forma trazer outros significados e lembranças", comenta ela acerca da localização da base de gravação.  

Ricco, que além de diretor de produção do “Noites em Claro”, também é morador do Bom Jardim, conta que o filme recebeu o apoio e a torcida não só do CCBJ, mas também de vizinhos, amigos e familiares. “Ele [o “Noites em Claro”] não é o primeiro filme feito no bairro e nem vai ser o último, mas ele tá aqui reafirmando que o bairro não é só violência, não é só o que os programas policiais mostram”, enfatiza.
 



Depois de dar a Carlos uma noite finalmente bem dormida, a equipe de “Noites em Claro” pode, assim como ele, deitar a cabeça no travesseiro, tranquila, com o orgulho de ter no portfólio uma evidência da potência do cinema de periferia, produto de resistência política e cultural.

Para Nayana, a vitória do filme no festival de cinema de Pernambuco funcionou como um demarcador. "Estamos no Brasil!", ela declara. "É importante e incentiva a turma de crianças que está em uma formação de longa duração em Audiovisual aqui no Bom Jardim, podemos mostrar para essas crianças que caminhos eles podem traçar e onde já foi possível chegar", prossegue.

Assim, as expectativas do diretor se cumprem. O filme já se mostra, tal como almejado por ele, um farol para os jovens de periferia vislumbrarem que, apesar das dificuldades e da falta de acesso, é possível fazer cinema de qualidade dentro da periferia. "Noites em Claro" é rebento de um território onde se faz arte.

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