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25/02/2024 às 17h29min - Atualizada em 23/02/2024 às 23h09min

O Som de Boygenius

Supergrupo formado por Julien Baker, Phoebe Bridgers e Lucy Danus vem se mostrando promissor ao mergulhar num indie rock regado de melancolia e vulnerabilidade

Maria Eduarda Torres Cavalcanti - Revisado por Paola Pedro
(Foto: Reprodução / El Periodico)

1994. Kalamazoo, Michigan. Após disparar para o estrelato com o sucesso de seu segundo álbum de estúdio, Nevermind, o Nirvana estampava a capa da Rolling Stone com trajes diferentes do habitual. Abandonando o jeans surrado por ternos executivos, o trio de roqueiros exibe uma estranheza não apenas literal — pelas poses e feições — , como metafórica, quase como se tivessem sido regurgitados pelo mundo corporativo. Uma piada ácida da qual certamente tiraria boas risadas de Kurt Cobain. A imagem, ainda que choque com o estilo característico da banda, data de tempos em que astros do rock exalavam rebeldia com suas grandes cabeleiras, riffs furiosos e vozes guturais. 

Eles quebravam guitarras e levavam estádios à loucura. O álcool não lhes queimava a garganta e o couro caia bem. Se cruzassem a rua da fama, eles a teriam como amante. Ela os cortejaria com tudo que estivesse a seu alcance: contratos milionários, discos de platina e multidões alucinadas. A fama os tornaria deuses, que podiam subir a escadaria do céu para tocar o paraíso e descer, quando bem entendessem, para pegar a estrada para o inferno. Este era o retrato que se teve por muitos anos das bandas de rock: homens, juntos, desfrutando dos prazeres de um mundo que eles mesmos criaram.


 

Vinte e oito anos depois, o supergrupo indie estadunidense Boygenius reproduziu a façanha dos intérpretes de Smells Like Teen Spirit e posou para a Rolling Stone como os novos “caras” do rock. Entre aspas, porque as letras e arranjos poderosos são de autoria feminina: Julien Baker, o rebelde tatuado, Phoebe Bridgers, o garoto estranhamente carismático de espírito melancólico, e Lucy Dacus, a figura introspectiva que dá liga ao trio. Elas vestem ternos, levantam o dedo do meio para a indústria que insiste em rivaliza-las e se auto proclamam “meninos gênios”, uma expressão zombeteira que homenageia o ego inflado de seus colegas do sexo masculino. 

 

A aliança Baker-Bridgers-Dacus surge no momento certo e é dotada de uma alquimia sublime, forjada no companheirismo e no conjunto de referências artísticas das integrantes. Como resultado dessa combinação caoticamente bela, nasce um som prismático: colaborativo, mas que consegue captar a identidade de cada uma delas, individualmente. Não há voz ou mente que se sobressaia no processo criativo — pois “sobressair” implica uma hierarquia, uma disputa pelo microfone, coisa que vai contra a própria natureza do Boygenius.  

 

A paixão pela música as acompanha: juntas e separadas

 

Julien Baker, Phoebe Bridgers e Lucy Dacus já estavam na estrada musical antes mesmo de se tornarem um trio. Afinal, para fazer jus à nomenclatura de ‘supergrupo’, elas se provaram intérpretes e compositoras talentosas para fazer brilhar os olhos dos críticos e conquistar o selo das gravadoras. Baker, uma ex-viciada em narcóticos nativa de Memphis — lar de Elvis Presley e onde está localizada Graceland, maior patrimônio turístico da região — e que dera seus primeiros passos na música com a igreja cristã, produz um som temperamental, cujas melodias confessionais e performance melancólica pendem para o mundo emo. 

 

Na faixa Faith Healer, de seu terceiro álbum de estúdio, Little Oblivions (2021), Julien escreve sobre uma crise de fé, traçando paralelos entre a crença cega e o uso de entorpecentes. Numa sequência simples de acordes, que permite a voz de Baker se projetar com mais facilidade, a cantora expressa a necessidade de reavaliar sua relação com a religião e a busca incessante pelo alívio espiritual — na pílula ou no bálsamo ungido — para curar o que nos aflige. 

 

Bridgers, de Los Angeles, fala para uma geração que sente em demasia, mas que sequer consegue nomear as próprias emoções. Com composições musicais evocativas e ricas em alegorias, Phoebe flerta com o rock acústico e folclórico. Graças ao seu timbre de voz suave capaz de mascarar suas letras cortantes e abrasadoras, Bridgers consegue ludibriar até os ouvintes mais atentos — muito semelhante à sonoridade dilacerante de Mitski, cantora nipo-estadunidense. 

 

Em I Know The End, faixa que encerra o aclamado Punisher (2020), seu segundo álbum de estúdio, a cantora nos leva ao juízo final com uma interpretação arrebatadora. Ela sussurra, grita e faz a guitarra agonizar em nossos ouvidos. E, por um segundo, acreditamos que Phoebe é uma espécie de criatura celestial, capaz de olhar para dentro de nós e trazer à superfície aquilo que insistimos em manter trancafiado. Já a sensação de ouvir Lucy Dacus — e especialmente o Home Video (2021), seu terceiro disco, é a de mergulhar: em sua voz profunda, nas páginas de seu diário e em experiências mais íntimas. É como se fossemos um velho amigo, a quem a artista confia suas memórias agridoces e confessa seus segredos. 

 

Caos Compartilhado

 

As três mulheres levavam vidas paralelas até, ocasionalmente, a cena alternativa estadunidense cruzar seus destinos. De palcos compartilhados, confidências por e-mail a trocas despretensiosas de leituras, elas decidiram se aventurar no estúdio de gravação e lançaram seu primeiro ep, Boygenius, em outubro de 2018. O disco, comprometido apenas em fazer músicas para se experimentar livremente, consegue elevar os talentos individuais das artistas enquanto entrega ao mundo um som sobrenaturalmente harmônico. 

 

Dacus abre a obra com uma letra corajosamente franca e a força impostada de sua guitarra em Bite The Hand, mergulhando na relação conturbada entre fã e artista —  com versos que recordam a poesia de Augusto dos Anjos, autor paraibano. Phoebe Bridgers vem em seguida com Me & My Dog versando sobre não conseguir superar um término e nos acerta com um instrumental cadenciado. Já Baker nos dá um soco no estômago com Stay Down, destilando toda a sua ferocidade e melancolia numa letra que é, essencialmente, sobre aprender a lutar. Apesar de ser merecidamente aclamado, o EP, composto por seis faixas, era apenas o prelúdio do que estava por vir. 

 

Cinco anos depois, é concebido o The Record: o primeiro álbum de estreia do trio e que mantém a atmosfera íntima de seu antecessor, ainda que aposte com mais frequência em um instrumental mais encorpado. As cantoras, que já têm o feitio de compartilhar o microfone e a caneta, dividem igualmente a participação nas faixas: cada uma assume a liderança em quatro canções, enquanto as outras duas oferecem amparo em versos e harmonias. Na faixa Without You Without Them somos recebidas por uma acapela calorosa, em que Baker, Bridgers e Dacus expressam gratidão às gerações que vieram antes delas — pai e avó — e pedem para contar suas próprias histórias até que estas também possam ser passadas adiante. Em seguida, somos confrontados com a guitarra furiosa de Baker que, não satisfeita em dominar o monstro de seis cordas, também agarra o microfone em $20 e canta, a plenos pulmões, sobre uma vida fora dos trilhos. 

 

Em Emily I’m Sorry, o vocal etéreo e nebuloso de Bridgers nos leva aos destroços de um relacionamento — que ela insiste em agarrá-los contra o peito, talvez na esperança de ser perdoada. “Tenho vinte e sete anos e não sei quem sou”, confessa a artista em meio a súplicas. Já em Not Strong Enough, as mulheres desabafam sobre uma insegurança que compartilham: a de não se acharem suficientes para ser o que outra pessoa precisa. A simbologia cristã presente na canção — “Sempre um anjo, nunca um Deus” — tece uma crítica afiada aos papéis de gênero impostos na sociedade, em que a figura masculina é vista como soberana na terra e na hierarquia espiritual e as mulheres são relegadas à castidade, pureza e subserviência. 

 

Enquanto Leonard Cohen é uma carta divertida e apaixonada sobre amizade, a faixa seguinte, Satanist, é um convite espirituoso para abraçar as diferentes formas de rebelião e desapego. Letter To An Old Poet fecha o disco em uma espécie de retorno à melancolia, com Bridgers tentando exorcizar seus demônios em dedilhados solitários. Composto por doze faixas, The Record é uma fusão mental poderosa e um vislumbre de novos horizontes da indústria fonográfica — que está cada vez mais colaborativa. Julien Baker, Phoebe Bridgers e Lucy Dacus empunharam guitarras e seguirão fazendo barulho: para que a vulnerabilidade se torne força e para que mulheres reverenciem a si mesmas e se transformem em suas próprias divindades. 

 

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