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02/04/2021 às 10h50min - Atualizada em 02/04/2021 às 10h42min

A Esperança sob o glamour da Inglaterra do século XIX

Romance de Lesley Pearse mostra uma outra faceta da sociedade inglesa

Larissa Bispo - Editado por Gustavo Henrique Araújo
Foto: Reprodução/Amazon
O século XIX foi marcado por grandes transformações sociais, econômicas e políticas. Entre ascensões e mudanças, algumas situações que permeavam a sociedade inglesa permaneceram sob os tapetes luxuosos entre as camadas sociais que prezavam pelas posições ocupadas e os seus prestígios para sustentar uma fachada de beleza e ostentação.  
 
Para além dos bailes e glamour da aristocracia e nobreza, Lesley Pearse constrói um romance que coloca em discussão e reflexão os problemas enfrentados pelas mulheres diante da dependência matrimonial e as consequências as quais estavam submetidas, assim como também a relação entre patrão e empregado e a lealdade nem sempre recíproca. Ainda, trata o homossexualismo e como a sociedade enxergava isso. E, somado a esses, podemos encontrar o impacto da cólera e a falta de saneamento urbano, a extrema pobreza e a Guerra da Crimeia na vida das pessoas.
 
“Esperança” se inicia em 1832 com o nascimento de Hope, fruto da infidelidade de lady Harvey para com seu marido, sir William. Temendo a ruína de sua senhora, a menina é levada para a casa da família de Nell, uma das criadas da mansão dos Harveys, e, assim, cresce em meio à pobreza e à fome, sem de fato saber a sua verdadeira origem. No entanto, aos 14 anos, diante das dificuldades a serem enfrentadas, Hope vai trabalhar como criada na mansão em que nasceu e precisa lidar com conflitos que a levam para caminhos de cenário de guerra.
 
Sendo um romance de construção, acompanhamos a vida de Hope desde o seu nascimento até a fase adulta. Cada fase da sua vida traz um panorama diferente e situações que transformam sua maneira de ver o mundo ao seu redor. Desde a dificuldade de sustento da sua família adotiva, passando por momentos de miséria e o surto de cólera enquanto viveu nos cortiços de Bristol e, depois, trabalhando como enfermeira, presenciando a negligência das autoridades com aqueles enfermos mais pobres. Esses eventos contribuíram para o amadurecimento de uma menina que precisou aprender a sobreviver.
 

“Havia muitos aristocratas que praticavam atos de beneficência, e Hope tinha certeza de que essas pessoas tinham bom coração. Infelizmente, porém, suas vidas eram diferentes demais da vida dos que se amontoavam em cortiços malcheirosos para entender que novas peças de roupa, uma refeição quente diária ou alguns xelins nunca resolveriam o problema. Que tudo isso só oferecia um conforto temporário."

No entanto, apesar do livro girar em torno de Hope, as personagens ao seu redor têm tanta importância quanto ela, especialmente porque possuem suas próprias histórias e não são colocadas ali sem propósito. A partir disso, vemos diferentes perspectivas e interpretações, além de entendimentos que trazem sentido a determinados acontecimentos dentro do enredo.

Como, por exemplo, Nell Renton, uma das irmãs adotivas de Hope e a grande responsável por levá-la para o lar de sua família. Tinha apenas 16 anos quando presenciou o nascimento de Hope e tinha sonhos como qualquer jovem. Mas, anos depois, estava em um casamento sem saber a razão de sua união com Albert Scott ser diferente do que imaginava. A situação de Nell, que não tinha escolhas legais de fugir de um matrimônio que a submetia às agressões diárias, traz o questionamento quase instantâneo de como isso não é muito diferente do que se configura para as mulheres da nossa atual sociedade – apesar de todas as transformações e lutas ao longo dos séculos.

“Legalmente, ela não tinha direitos; a esposa era propriedade do marido e devia lhe obedecer."

Lesley também traz a relação entre criados e a aristocracia. Qual era o limite em que andava a lealdade do aristocrata com seu criado? Enquanto um lado adicionava outro ser à sua família, que havia mais bocas para comer do que de fato possuía comida, por lealdade a sua senhora, o outro ignorava os problemas daquela que a servia, vestia e estava ali a disposição, faça chuva ou sol. Muitas das vezes não conheciam aqueles que empregavam, nem mesmo de rosto ou a própria história de vida.

“– (...) Mas, é claro, a senhora não vê nenhum de nós como gente, não é verdade? (...) Não imagina que tenhamos sentimentos, nem mesmo uma vida própria. Não se importa se estamos cansados, doentes ou angustiados, nem valoriza nossa lealdade."

Não deixando de lado, a autora aborda o período sombrio da Guerra da Crimeia (1853-1856), focando, no entanto, no papel de Hope nas enfermarias e, a partir disso, sobre a desvalorização da profissão, dos soldados rasos e das próprias mulheres de militares que, sob condições terríveis, contribuíam com refeições, limpeza, cuidados com os doentes etc. As descrições são difíceis, mas trazem uma visão reflexiva.

Além disso, como Lesley Pearse salienta na nota final do livro, muitos dos esforços para a transformar a profissão vem de Florence Nightingale – citada dentro da história, inclusive – e o seu papel no corpo de enfermagem nos hospitais militares, mas, novamente dito pela autora, houve muitos outros heróis e heroínas desconhecidas, cuja coragem também deveria ter sido honrada e lembrada.  

“Seu desejo era que um dia os hospitais fossem lugares melhores, que os soldados rasos fossem tratados com humanidade e a enfermagem se tornasse uma profissão honrada."

A escrita imersiva de Pearse permite ao leitor sentir, emocionar e refletir sobre inúmeras situações que permeavam aqueles sob o glamour da nobreza e aristocracia, mas não abre mão de mostrar que também existia a vulnerabilidade entre estratos sociais mais privilegiados. “Esperança” é menina que nasceu, cresceu e caminhou por caminhos difíceis, mas, principalmente, foi a palavra que moveu muitos daqueles que viviam diante desses – e outros – obstáculos citados na história. 
 


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