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23/06/2021 às 05h20min - Atualizada em 15/06/2021 às 13h37min

Crônica da Saudade | O sumiço do São João

Ou o dia em que João Antônio quase perdeu a cabeça e o santo.

Raíssa Sousa - Revisado por Mário Cypriano
O momento em que o São João perdeu a cor - Foto: Reprodução / pointer.com.br
23 de junho. João Antônio acordou ligeiro. Sentiu falta do toque do despertador no celular, mas jurou estar atrasado. Levantou. Eram 4 da manhã, o horário que sempre levantava da cama, abria as janelas da casa e esperava o sol nascer para poder entrar.

Seu peito estava em folia, seus dedos tamborilavam a mesa, enquanto esperava a chaleira apitar anunciando o fervor do café. Tamborilava um batuque conhecido, mas que não lembrava onde havia aprendido.

O dia raiou e aquela luz iluminou todo o ambiente, refletindo em um velho instrumento ao fundo da garagem. Curioso, foi até o objeto peculiar, observou as cores, teclas, botões, textura. Revirou de um lado, revirou do outro, mas não se lembrou como fazia aquela coisa ligar. Deixou o instrumento de lado e decidiu abrir a porta para contemplar o dia.

No momento em que pôs os pés para fora de casa, sentiu um vazio no peito, um misto de saudade e ansiedade, na espera de algo que não soube o que era.

Decidiu caminhar pelas ruas, tomar um sol, cumprimentar seus vizinhos, olhar os carros passando como sempre fez. Viu pedaços de algo colorido balançando no teto das casas e quase acreditou que a passagem de uma brisa fez-se ouvir um chocalho. Mas, não. Era tecido. Não tinha como fazer aquele barulho de plástico. Fechou os olhos, respirou fundo, e ao abrir novamente, percebeu os retalhos haviam perdido a cor.

Estranho.

Continuando sua caminhada, acenou para algumas poucas pessoas na rua, arrancou algumas folhas das árvores e sentou para descansar no banco da praça. Ao seu lado, pousou um pássaro, um pombo. João observou aquele animal cheio de vida por poder voar, reparando na cor das asas. Eram brancas.

Engraçado. Em sua mente veio um tom, lá no fundo, parecido com o batuque dos dedos.

Aperreado, voltou a caminhar, passando por um homem que carregava troncos pesados de árvore em um carrinho de mão, enquanto assoviava aquela canção que tamborilou na mente de João a manhã inteira. A mesma canção.

Quase parou aquele estranho para pedir informação. Mas, meio atordoado, seguiu seu caminho. Deu alguns poucos passos até decidir encarar a situação e perguntar ao homem o nome da música que estava pairando no ambiente.

Ao virar-se para trás, o rapaz havia desaparecido. Poderia até ter virado a esquina, mas era uma rua sem saída. E sem casas. Era uma praça.

Ficou ainda mais confuso e adiantou seus passos para casa. Ao chegar, ligou para a família para saber como estavam e alertá-los previamente do que estava sentindo em seu âmago. Julgou ser delírio, alucinação e até com medo da morte ficou.

Mas, para sua surpresa, todos do seu convívio sentiam sintomas semelhantes. Talvez estivessem contaminados com algum vírus pandêmico, como ocorreu anos atrás, na época de seus pais.

Um vírus que afastou as pessoas, trancafiou-as em casa, levou consigo memórias culturais, mudou a forma de ensinar nas escolas, e ainda matou milhares. Um vírus que escondeu sorrisos e impediu abraços.

Apressou-se em trancar as portas, suspirou fundo e, tentando colocar a cabeça no lugar, tirou do bolso um cigarro, pegou o isqueiro e acendeu. No mesmo instante, um calor imenso percorreu seu corpo, como brasa queimando, mas sem o tocar. Um calor que o consumia em chamas ardentes em questão de segundos.

Deixou o cigarro ainda aceso cair e correu para o banho. Já estava desesperado, perdendo as esperanças em sua saúde.

Foi então que ouviu um som ao longe. Aquele som. O som que havia batucado a manhã inteira. O som que ouviu sair do estranho na rua através de seus lábios quase fechados. Mas, desta vez, continha algo a mais: um tink-tink e um fon-fon. Algo que remeteu àquele instrumento empoeirado na garagem da casa.

Saiu do banho e se enxugou de qualquer jeito, mas já não ouvia mais aquela melodia. Olhou pela janela e nada. Abriu a garagem e tentou recriar a melodia naquelas teclas empoeiradas. Puxou de um lado, apertou de outro, mas nada se ouvia sair daquele metal. Tentou mais uma, duas, três vezes e não conseguiu. Desistiu.

Pensou que, além de alucinado, estava perdendo os sentidos.

Correu pela casa e bebeu um grande gole d'água para apaziguar o coração que batia acelerado em um ritmo descompassado onde quase se ouvia uma dança de salão: tum-tum para um lado e tum-tum para o outro. Ao invés da água, sentiu em seu paladar o sabor quente e quase fervente de uma bebida que seu avô havia lhe apresentado em uma das visitas ao sertão.

Pronto! Foi a gota d' água para o homem pensar que enlouqueceu.

Ao cair sentado, desabou com tanta velocidade que nem observou a cadeira fora do lugar. A queda foi feia. Bateu a cabeça e tudo começou a girar, incluindo balões, bandeiras, e a imagem daquele a que rezava todas as noites, o santo São João.


23 de junho. João Antônio acordou ligeiro com seu despertador tocando Asa Branca, de Luíz Gonzaga, seu artista favorito. Espreguiçou-se, tentando recordar o pesadelo que teve na noite anterior. A vivência que o fez temer o futuro, mas que fora interrompida pelo som do aparelho.

Levantou-se, abriu as janelas, pôs o café para ferver e lembrou do sonho. Correu em direção ao celular e discou o número da irmã. Caixa postal. Foi até a garagem onde tinha apenas a cadeira de balanço que havia sido de seu pai. Abriu um sorriso. Era onde o pai costumava sentar, contar histórias e tocar sanfona.

Sua história favorita era a do Sumiço do São João, quando o Santo fora roubado de sua casa e seu pai chegou a delirar de tristeza e preocupação.

João ouviu tanto essa história que sabia de cor: da asa branca na praça, do estranho na rua sem saída, do fogo e do vento. Ele sabia.

Olhou para a estante da sala e reconheceu aquele que se destacava no meio do cômodo branco: o Santo São João.

Foi apenas um sonho...



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