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16/08/2021 às 08h50min - Atualizada em 16/08/2021 às 08h52min

Bailarinas relatam pressão para terem corpo considerado padrão. "Se eu tivesse professoras me incentivando e não falando do meu corpo poderia ser diferente"

Pressão estética e comentários gordofóbicos são vivenciados por pessoas que estão no mundo da dança

Isabela dos Santos - editado por Larissa Nunes
Bianca Leque dos Santos. (Foto: Leonardo Zima; Edição: Sérgio Biller)

Para pessoas que embarcam no mundo da dança, seja por hobby ou profissão, a expressão “a arte imita a vida” pode resumir algumas situações. Isso se considerarmos que padrões estéticos impostos pela sociedade também são reforçados aos dançarinos. Mas se eles consideram dançar uma forma de expressão e liberdade, o que acontece quando são pressionados a terem “corpos perfeitos” para se sentirem pertencentes à arte?

Esse dilema por muito tempo tomou conta da vida de Tayane Santos Pereira de Souza, Dionê Andrade de Alvarenga e Bianca Leque dos Santos. Todas elas têm experiências de sentirem que não tinham o corpo feito para a dança. Especialmente para serem bailarinas, pois no balé elas afirmam que o tipo de corpo que mais “agrada” precisa ser magro e, de preferência, sem curvas.

Eu nunca tive um corpo padrão depois que fiquei mocinha e tudo mais. As pessoas falavam que eu era gorda, que não tinha corpo para o balé, para o collant (o figurino padrão do balé). Quando eu ia de collant e meia calça, as pessoas ficavam rindo”, relata a educadora física Tayane, de 23 anos. Aos 16 anos, ela entrou para o mundo do balé e mesmo gostando muito de dançar, passou por algumas situações que reforçavam que seu corpo não era de bailarina.

Já a biomédica Dionê, 25, entrou para o balé clássico com 7 anos. Entre as situações que já passou, ela cita que as professoras usavam um cinto para marcar onde deveria ser a cintura das bailarinas. “Esse cinto fazia parte do nosso uniforme, ele era um tecido menos adaptável. Me traumatizou, porque eu ficava pensando se iria servir. Geralmente, as professoras escolhiam uma pessoa que tinha uma desenvoltura melhor e tinha o corpo mais padrão e falavam: é desse jeito que esse ‘cintinho’ tem que ficar”.

Ela ainda conta que muitas vezes já ouviu das professoras que precisava emagrecer e até hoje fica preocupada por engordar. Por muitas vezes, faz dieta e até deixa de comer, mesmo estando com fome, no intuito de que isso ajude a não ganhar peso. Ela sabe que isso pode ser prejudicial para a saúde e que precisa trabalhar esse pensamento, mas é algo que ela internalizou.

A pedagoga e professora de dança Bianca Leque, 37, também iniciou novinha no balé, aos 5 anos. Dentre suas experiências na modalidade, ela conta que era muito difícil meninas não magras ou com mais curvas ganharem destaque nas coreografias. “No balé não tinha essa chance. Eu sempre ficava na ponta, era muito difícil me ver na frente. Se era na frente, era na lateral, nunca no meio”.

Atualmente, Bianca diz ter ciência de que seu biotipo não é magro. “Eu nunca fui magra, meu biotipo não é pra isso. Até porque eu tive problemas de bronquite, tomava medicamentos que me enchiam, mexiam muito com os meus hormônios. Eu passei por fases de sanfona (perder e ganhar peso), mas meu biotipo nunca foi do tipo magra”.

Autoestima

Com tantas experiências, todas elas ficaram com marcas da época em que frequentavam as aulas de dança. Bianca, por exemplo, ficou anos longe da prática após ter o seu filho e não pensava em voltar pois tinha engordado muito, “como eu posso voltar gorda e velha?”, questionava. Ela diz que são paradigmas que está tentando quebrar. Ainda relembra que essas situações foram prejudiciais para o seu crescimento.

“A gente era muito nova. A professora pegava as favoritas dela, o padrão de corpo como destaque e te colocava como o cenário na coreografia. No meu caso, eu era adolescente, era cheia de ‘neura’, sempre tinha uma baixa autoestima. Hoje em dia eu trabalho muito isso em mim, não é fácil, mas mexe sim. A gente entra no balé, onde a gente tem que se expressar e se sente livre, mas aí você é colocada num padrão”.

Para Dionê, que sempre teve como paixão o balé clássico, toda essa pressão para ter um corpo padrão resultou em frustração. “Eu levei para a vida que nunca vou ser uma bailarina clássica. Além de não ter o corpo padrão, não tenho a cor também, por ser negra”. Ela ainda relata que por conta disso continua tentando fazer dieta com frequência por ter crescido no mundo do balé. “Fora desse mundo, percebi que aos olhos das pessoas eu tinha um corpo até considerado bonito, mas acho que por conta de toda essa estrutura nunca achei isso. Até hoje eu penso que tenho que emagrecer, que estou ficando barriguda, daqui a pouco não vou conseguir fazer nada. É algo que está enraizado”.

A autossabotagem também acompanha Dionê por conta de tudo que ela já ouviu. Em uma situação, quando ainda estava na faculdade, se candidatou para uma vaga de professora de balé de babyclass, ou seja, para ensinar crianças. Ela recebeu uma ligação dizendo que gostaram muito do currículo dela e que poderia dar uma aula experimental para avaliação. “Na hora que ele me ligou eu fiquei tão feliz, mas ao mesmo tempo eu pensei: não escolhe isso, não vai dar certo”.

Ela acabou dizendo não para essa oportunidade, deixando o homem que tinha entrado em contato confuso, pois a mesma se candidatou para a vaga. A ex-bailarina sabia que dava para conciliar o estágio da faculdade com essas aulas de balé, mas se sentiu incapaz. “Chorei muito quando parei para pensar e já tinha ido. A gente acaba não percebendo e se sente incapaz, pensando: nossa, mas pra que vou decidir fazer algo do balé, se não vou poder dançar?”.

Já Tayane, quando entrou para o balé aos 16 anos, ouvia o professor falar para outras meninas que elas precisavam emagrecer. Ela não sabe se ele não falava diretamente com ela por ele ser amigo de seu pai. Mas mesmo assim, aquilo doía nela, pois nunca teve um corpo magro. Somava isso ao fato dela ter entrado mais velha do que o considerado normal no balé e não estar no mesmo nível que as pessoas da sua turma na época, o sofrimento era maior. Na verdade, ela entrou para o balé porque precisou fazer alguma atividade física devido à disfunção na tireoide. “Eu me sentia péssima, minha vontade era pegar minhas coisas e ir embora. Mas eu ia pra casa, assistia vídeos de dança, onde tinha pessoas de todos os tipos”.

Quando o corpo é visto com outros olhos

Todas as entrevistadas além do balé fizeram outras modalidades de dança. E foi aí que muitas perceberam que se sentiam pertencentes a essa arte. "Em 2017, depois que eu entrei no Espaço Aba, em São Vicente, São Paulo, foi quando comecei a ver a dança como uma coisa boa e gostar de verdade. Não é um grupo de dança, é um espaço social, tem jazz, balé, dança de rua, aula de reforço, muitas coisas. Me inscrevi para o balé iniciante, basicamente era todo mundo fora do padrão, não tinha muitas pessoas magras. Fiz também dança de rua, jazz e foi ali que eu comecei a me sentir bem”, afirma Tayane.

Dionê quando começou a dançar em outra companhia em 2012, no Ballerine Home de Santos, passou a escutar outros tipos de comentários. “Nossa você tem um corpo muito bonito, tem perna, coxa, bunda… E eu pensava: mas como aqui meu corpo é bonito e quando eu fazia o balé clássico não era?”.

Bianca, após retornar a dança aos 29 anos, fez danças urbanas no grupo Nação de Rua, e após conseguiu entrar para a companhia Silia e Ceci de Santos, em São Paulo, onde pode retornar ao balé e ao jazz, e também fazer sapateado. Nesse momento, ela conheceu o grupo Baixada Hip Hop, que fez parte de 2016 a 2017. “Por terem pessoas LGBT+ eles trabalham a força que isso tem e aquilo para mim foi maravilhoso de ver: olha a forma que eles lutam. Então, eu me apaixonei por outras modalidades, que aceitam meu corpo melhor. Entendi que quero me sentir bem, emagrecendo ou não”.

Por mais professores que incentivem

Dionê que fez balé por muitos anos e até dançou profissionalmente já não está mais no mundo da dança por conta do trabalho e da pandemia. Mas afirma que sente muita falta e talvez se tivesse sido incentivada a continuar e não pressionada a ter um corpo padrão, poderia seguir sua vida como bailarina. Ela afirma que o papel dos professores nesse processo é essencial.

“Acho que seria diferente. Hoje eu poderia estar trabalhando com dança, mas por conta disso tudo eu acabei me perguntando: ser professora, ser dançarina, é isso que a gente quer? Eu acabei sendo levada para outros lugares, sem ser da dança. Se eu tivesse professoras me incentivando e não falando do meu corpo poderia ser diferente. Amo dançar, está no meu DNA, mas não deu pra conciliar por conta da vida que eu escolhi”.

Bianca após retornar a dança, fez muitas coisas e conseguiu ser professora de Jazz. Após toda a experiência que teve, ela afirma que tenta trabalhar o psicológico de suas alunas para que elas não passem pela mesma pressão. "Cada um tem um aspecto e precisamos respeitar, trabalhar com o que a gente tem. Não adianta reprimir, graças a Deus hoje em dia olho para os meus professores ruins e penso: não vou ser assim".

Dança para todos

"Todo mundo que quer dançar tem que dançar, não é para diminuir o corpo de alguém. Foi muito importante eu entender isso". A fala é de Tayane, que além de se sentir bem no Espaço Aba, em São Vicente, encontrou no grupo de dança Fefesp o sentimento de pertencimento. É um grupo da Universidade Santa Cecília, em Santos, São Paulo, que
Tayane começou a fazer parte quando ingressou no curso de Educação Física.

"Foi surreal descobrir um grupo inclusivo. Todo mundo estava lá para aprender. Quem fazia a coreografia tinha que lidar com as diferenças, a Educação Física é isso. Esse grupo de dança foi a melhor sacada e aprendemos vários estilos". Ela ainda relata que ao longo do curso entendeu que como profissional tem que focar na saúde "porque um corpo magro não quer dizer saúde, um corpo gordo não quer dizer saúde".

"Foi buscando emagrecimento que a gente adoeceu"

Assim também pensa o nutricionista Erick Cuzziol, que fala sobre saúde para todos os tamanhos de corpos e tem o perfil Nutricionista Gordo no Instagram para dialogar abertamente sobre esses assuntos. Ele explica que nenhum corpo é igual. “A gente pode pensar na genética, na questão de raça/etnia, por exemplo, todo mundo tem um corpo diferente”. O profissional ainda fala que por a moda ditar um corpo cada vez mais magro, a sociedade torna isso um valor social em vez de uma questão de saúde.

E ele explica que mesmo a pessoa gorda sendo metabolicamente saudável, a sociedade não aceita esse fato. "Para alguns isso não faz sentido, na realidade a pessoa gorda tem um fator de risco, mas se ela está comendo bem e se exercitando, já previne... Na verdade, as pessoas criaram um entendimento de quando estou magro, me esforço. O discurso sim falar de doença e saúde, mas na realidade a questão é outra, é ser vista como esforçada, dedicada. O pior de tudo, a pessoa gorda é vista como incapaz, (pela lógica) se ela não é capaz de emagrecer, não é capaz de fazer uma faculdade, de ocupar postos de empregos básicos. Tudo afeta a vida dela".



Por isso, o nutricionista fala que quando o assunto é corpo, é preciso chegar na parte segura, não na magreza. Uma dica que ele dá é o cuidado na hora de procurar um profissional da saúde.

"É preciso ter cuidado, porque muitos profissionais acabam promovendo a gordofobia também. Então essas pessoas podem cair ainda mais na mão de quem vai adoecer elas. É preciso procurar profissionais que explicam melhor as dificuldades de emagrecer, que falem sobre comportamento alimentar. Na área da atividade física, por exemplo, procurar por profissionais que falem sobre o prazer daquela atividade e não só do emagrecer".

Ele ainda dá um recado para as pessoas gordas que querem dançar. "A primeira coisa é que as pessoas gordas precisam acreditar no corpo delas. Se uma bailarina é gorda, ela é mais que uma bailarina, é um símbolo de resistência. Não é justo a gente achar que só pode dançar quem é magro. Foi buscando emagrecimento que a gente adoeceu".

Saúde mental

A pressão para ter determinado tipo de corpo pode impactar a saúde mental. A psicóloga Gabriele Menezes, que atende principalmente mulheres gordas e fala sobre o assunto em seu Instagram, afirma que esses impactos são diversos. Além de afetar a autoestima, pode levar essas pessoas à exclusão de um determinado meio social, como no caso da dança.

"Falas e atitudes gordofóbicas afastam pessoas, de todos os meios sociais possíveis, ninguém gosta de ser mal tratado. Pense que a pessoa ama dança, ama balé, mas sempre é reforçado que com aquele corpo não é o lugar dela. A que lugar ela pertencerá? Ou ainda, professores que pedem emagrecimento a todo custo, visando apenas que a dançarina emagreça, por exemplo, podendo gerar até um transtorno alimentar grave para que se chegue nesse dito corpo ideal".

A psicóloga ainda afirma que o preconceito gera a insegurança, que é um dos principais fatores que faz com que pessoas gordas se afastem dos meios sociais, dos esportes que gostam, da rotina cotidiana. E se não houvesse tanta cobrança e julgamento e sim um acolhimento em relação ao corpo das pessoas, elas teriam melhores condições de mostrar seu potencial.

Gabriele também explica que ser gordo não significa se sentir gordo e que é importante as pessoas se darem nome se elas forem gordas de fato, mas também que não devemos ficar procurando por uma definição do que é ser gordo, pois o ideal seria isso não ser uma questão.

"Quando a sentença recai sobre 'estou me sentindo gorda depois de comer essa coxinha', por exemplo, normalmente a pessoa não é gorda. A gente pode pensar em definições como gorda menor e gorda maior, sem medo de falar a palavra mesmo. Quando nos damos nome, nos colocamos no mundo. Os parâmetros de corpo mudam constantemente. Talvez possamos definir por um manequim - e nesse caso a moda nos ajude - de pensar numa sessão plus size que começa a partir do 46, por exemplo. Acredito que para responder isso, teríamos que pensar num grupo muito grande de pessoas. Existem vários tipos de corpos de pessoas gordas, a pergunta que talvez deveria ser feita em relação ao tamanho do corpo de alguém é: porque isso importa tanto? A gente pensa o tempo todo que o corpo do outro - principalmente o corpo gordo - pode ser julgado, pode ser falado, colocado na fogueira da inquisição para que falem mal dele. O certo é não falar sobre o corpo de ninguém".

Também é importante deixar claro a diferença da gordofobia e da pressão estética. Segundo a psicóloga, a pressão estética pode acontecer com todas as pessoas, especialmente às mulheres. Já a gordofobia acomete as pessoas gordas e principalmente as gordas maiores. "Elas se diferenciam principalmente pois as lutas são muito diferentes, temos de um lado a estética e do outro lado uma falta de acesso, uma aversão e exclusão ao corpo gordo. A gordofobia é além da marginalização dos corpos gordos, a falta de acesso, falta de maquinário, exclusão à saúde, como falta de atendimento com respeito, são muitas coisas. Uma pessoa magra que sofre pressão estética, não passaria por isso, pois possivelmente ela é magra".

Gabriele também é responsável pelo perfil Saúde Sem Gordofobia no Instagram, em conjunto com a psicóloga Laís Sellmer, onde cadastram profissionais de saúde de diversos estados, que têm uma conduta respeitosa e não gordofóbica em seus atendimentos de saúde.

Importância da aceitação e referências

Maria Angelita da Silva Cordeiro, de 27 anos, é professora de dança do ventre e se afirma como bailarina, professora negra e gorda. Ela explica que apesar dos olhares de julgamento e por não haver muitas colegas com o mesmo tipo de corpo que ela, teve muito apoio da família e da sua primeira professora de dança do ventre e isso foi essencial para a aceitação de quem é.

"Sempre fui rotulada como a morena gordinha que dança. Sempre ouvi isso com um tom ameno para falar sem ofender. Atualmente, eu mesma digo o que sou eu sou: uma bailarina e professora negra e gorda! Não tem problema algum, porque eu me aceito e o que realmente importa é o que ensino e o que sinto enquanto danço. Minha família sempre foi o principal ponto de apoio porque nunca ouvi deles que não poderia fazer algo e que isto ou aquilo não era pra mim".

Ela afirma que atualmente só aceita críticas construtivas e que após sete anos de estrada na dança, chegou a um ponto que o seu corpo não importava, somente a sua dança. Hoje, ela pode ser referência para outras meninas gordas e negras.

"Estou aí, dançando, aprendendo e me afirmando. Até hoje procuro incentivar, ajudar e empoderar outras mulheres e meninas a serem o que elas quiserem desde que aquilo faça bem a elas independente de um corpo. Eu sempre via bailarinas magras de cabelos longos e nenhuma delas era uma referência direta pra mim até conhecer Angela Cheirosa e através do trabalho dela eu vi que mesmo longe nós não estamos sozinhas. Isso foi muito importante também".


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