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24/09/2023 às 18h09min - Atualizada em 24/09/2023 às 15h47min

Os caminhos para a valorização do cinema nacional

Das cotas dela à conscientização do público, profissionais e espectadores do audiovisual brasileiro comentam sobre a realidade das nossas produções

Gabrielly Leopold - Revisado por Danielle Carvalho
(Foto: Reprodução / Ingimage)


Você se lembra do último filme nacional que assistiu no cinema? Uma pergunta simples, mas que provavelmente te fez pensar por alguns instantes. Agora, se eu apenas tirasse o “nacional” da pergunta, talvez você me respondesse com Barbie ou Oppenheimer, os sucessos de bilheteria mais recentes. Será que existe uma preferência por filmes estrangeiros ou apenas fomos acostumados assim? 

Mirielle Carvalho, estudante de Jornalismo da Universidade Anhembi Morumbi, é uma grande apreciadora do cinema em geral e comenta sobre o contraste de divulgação entre os filmes nacionais e estrangeiros: “Na semana passada, por exemplo, fui procurar alguns horários para poder assistir ao documentário brasileiro ‘Retratos Fantasmas’, do Kleber Mendonça Filho e, como sempre, os pôsteres e trailers de filmes internacionais, como Barbie, Besouro Azul e Oppenheimer, predominavam nas sessões e também nas divulgações nos corredores do cinema. Geralmente, quando se trata de produções nacionais, acabo encontrando mais divulgações nas ruas do que em cinemas mesmo”.

O cinema nacional é rico em diferentes gêneros, com histórias para agradar dos fãs de animação aos que não dispensam um bom suspense, mas muitas dessas produções sequer chegam até boa parte do seu público, apesar do potencial para lotar as salas de cinema. Helen Desireé, estudante de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará, relata que já começou o curso com uma ideia desmistificada e ciente da realidade artística no Brasil: “Eu sabia que não era o sonho americano que a gente conhece, eu sabia que não era Hollywood”.

Um dos motivos principais para a falta de incentivo do cinema brasileiro é o estereótipo do “cinema de shopping”. Segundo Caroline Pardo, fotógrafa formada em Cinema e Audiovisual e pós-graduada em Direção de Fotografia, as pessoas estão tão acostumadas a consumir conteúdos internacionais que passam a acreditar que esse é o único audiovisual rentável e, para alguns, é como se esse fosse o único tipo de cinema existente: “Quando eu fui fazer a minha faculdade de cinema, meus pais não sabiam que existia essa faculdade, aliás, muita gente que eu conversei sobre achava que isso era algo só do exterior”.
 


 

Falta de interesse ou de incentivo?

 Será que é apenas falta de interesse do público ou faltam políticas de incentivo às produções nacionais? Para Helen, os dois fatores estão entrelaçados: “É algo histórico e cultural que existe essa desvalorização vinda do público, mas eu acredito que é uma rejeição muito minada por um contato desde cedo com a divulgação das produções de outros países no Brasil, sendo distribuídas aqui, sendo comercializadas aqui. O Brasil abraça muito isso, em contrapartida, as suas próprias produções não passam pelo mesmo processo”. Ilustrando esse cenário, o painel Indicadores do Mercado de Exibição, divulgado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) revela que, entre 5 de janeiro e 2 de agosto de 2023, apenas obras internacionais ocuparam o ranking dos títulos mais vistos do ano.

“Já ouvi vários relatos de pessoas falando que não consomem filmes nacionais por ser retratado apenas sobre violência, o que é uma realidade brasileira, mas não é a única no momento. Tem muitas coisas que fazem o nosso cinema ser desvalorizado, mas um dos grandes motivos é o público.” Caroline acredita que se o público se interessasse mais pelo que é produzido aqui, valorizasse o esforço dos profissionais envolvidos, a realidade do cinema nacional poderia ser diferente.

São muitas as justificativas que ouvimos dos próprios brasileiros para essa rejeição com as nossas produções, não só do cinema, mas da cultura em geral. Dos estereótipos ao viés ideológico que algumas pessoas associam ao que é produzido aqui, Mirielle observa algo pouco admitido, mas que traduz os pensamentos de muitos:

"Boa parte das pessoas não gostam de encarar a sua realidade em tela e isso é algo muito retratado nas obras nacionais. Ou seja, as produções brasileiras, em sua grande maioria, acabam por abordar temáticas mais sociais ou assuntos que são mais fiéis à realidade do país e o que nele acontece. E infelizmente as pessoas não gostam disso.”

 

As cotas de tela: incentivo e possibilidade, não solução

Se existe uma resistência do brasileiro com as produções nacionais, somada aos escassos investimentos no audiovisual, surge a necessidade de medidas que incentivem mais as nossas próprias produções e que tornem justa a competitividade com os grandes sucessos estrangeiros, assim surgiu a Cota de Tela. A medida existe no Brasil desde 2001 e determina a obrigatoriedade da exibição de filmes nacionais nas salas de cinema, sujeito a multa de 5% da receita bruta diária de cada cinema em caso de descumprimento. Sem as cotas, os nossos filmes também desaparecem do horário nobre das salas de cinema, de acordo com a Ancine muitas produções nacionais têm sido exibidas em sessões antes das 16h.


O Projeto de Lei também engloba a exibição de conteúdos nacionais na TV paga, mas com especificações diferentes. Vale lembrar que essa é uma medida de renovação anual: foi definido que durante 20 anos um decreto presidencial deveria ser assinado para manter sua validade. No entanto, quando o presidente Michel Temer saiu do poder, o decreto não foi assinado e, durante os 4 anos do governo Bolsonaro, também não. Em 2021, a validade do projeto chegou ao fim.

 

 “A cota de tela existe para promover oportunidades. A partir do momento que você escreve um Projeto de Lei sobre isso, você reconhece a realidade de que, dentro do mercado, a competição para filmes brasileiros é extremamente desproporcional tratando-se de alcance e distribuição. Ela não é a solução para os problemas, é uma possibilidade de estarmos competindo com produções que têm muito mais acessos do que as nossas. É um meio necessário para reestruturar o nosso mercado”, Helen comenta.


Apesar da importância do Projeto de Lei, não podemos considerá-lo a única medida necessária para valorizar o cinema nacional. Além disso, Helen explica por que é importante uma revisão desse projeto: “Precisa ser bem mais suplementado por uma pesquisa e por um recorte social do impacto que o cinema nacional vem sofrendo com o sucateamento, com a desvalorização e principalmente pensar em como essa distribuição pode dar espaço para as produções que vem tendo investimento do poder federal”.

Com as novas alterações aprovadas pelo Senado Federal, atualmente o cinema está fora da cota de tela, ela só foi renovada para a TV paga. De acordo com o senador Humberto Costa, é necessário “um olhar exclusivo para a questão do cinema”. A medida ainda precisa passar pela Comissão de Comunicação e Direito Digital antes de ser encaminhada para a Câmara dos Deputados.

Na prática: filmes estrangeiros que ocuparam quase 100% das salas de cinema — e que você talvez conheça

Um exemplo clássico do quanto a competitividade dos filmes nacionais não é proporcional aos estrangeiros é o lançamento de Vingadores Ultimato, em 2019, em que a grade de exibição de muitos cinemas era exclusiva para o sucesso da Marvel, impossibilitando a exibição de outros longas lançados nessa época ou deixando sua exibição mais curta, como aconteceu com De Pernas pro Ar 3. Do ponto de vista de quem acompanha a realidade do audiovisual diariamente, Caroline também defende as cotas: “Eu acho que a Cota de Tela acaba incentivando a galera a ver os nossos filmes, porque de certa forma são pessoas que estão habituadas a assistir filmes estrangeiros, então eles vêem que têm essa outra alternativa”. 


Talvez você não tenha vivenciado o fenômeno dos Vingadores, mas atualmente tivemos uma situação parecida com filmes que você já ouviu falar pelo menos uma vez esse ano: Barbie e Oppenheimer. Em grande parte dos cinemas, esses eram os únicos títulos disponíveis, mas isso não quer dizer que não haviam filmes nacionais com lançamento na mesma época. Uma semana antes, o filme Perdida, baseado no romance da autora Carina Rissi, havia estreado nas telonas, mas em muitas regiões não ficou mais que 1 semana em cartaz ou só estava disponível em horários inacessíveis para grande parte do público, isso porque os sucessos estrangeiros mais aguardados ocuparam quase todas as salas.



Caroline acredita que o fênomeno “Barbenheimer” é uma realidade um pouco distante para as produções brasileiras, especialmente devido aos investimentos completamente diferentes do que temos aqui: “Eu não culpo o público 100%, porque querendo ou não, Hollywood é uma coisa impossível hoje para o Brasil competir. A gente tem falta de investimento e a nossa produção brasileira acaba sendo refém desses filmes mais baratos”.
 

Incentivo à produção, distribuição e parceria do público: um começo para a valorização do nosso cinema

Com a Covid-19, a extinção do Ministério da Cultura durante o governo Bolsonaro e as constantes ameaças à Ancine, tornou-se urgente a criação de mais medidas de atenção ao audiovisual e à cultura do país. Em 2022 foi aprovada a Lei Paulo Gustavo, que destina ações emergenciais ao setor cultural em decorrência da pandemia. Caroline conta um pouco sobre como o audiovisual foi beneficiado com a medida e explica que é mais uma das formas de fazer público conhecer as nossas produções: “A gente consegue ter recursos para trazer esse tipo de cultura para quem não está tão habituado a assistir ao cinema brasileiro. Eu já conversei com meus pais e eles falam que conhecem ‘Cidade de Deus’, ‘Tropa de Elite’, mas nunca mais viram nenhum outro filme brasileiro”.

 Helen também reconhece a importância dessa lei para o cinema nacional, mas ressalta que o incentivo deve estar em conjunto com as políticas de distribuição: “Se isso é pensado para fomentar a produção, mas não é considerado o impacto que a distribuição dos filmes que são produzidos no Brasil têm sofrido com a superlotação da programação de salas de cinema reservada para produções internacionais, muito provavelmente serão produções que não terão uma visibilidade importante, principalmente pensando no quanto está sendo investido para que sejam bem feitas. Precisa ser bem mais suplementada por uma pesquisa e por um recorte social.” 

Podemos dizer que a Lei Paulo Gustavo e as cotas de tela devem andar lado a lado quando o assunto é o setor do audiovisual nacional, afinal, pensar em investimento e ignorar a distribuição, é amenizar um problema criando outro.

“Pode parecer clichê, mas o que mais me encanta nas produções audiovisuais brasileiras é o quanto elas são bem feitas e bem produzidas, além da grande entrega da maioria dos atores do elenco. Os cenários, a sonoplastia e as temáticas que os cinegrafistas e diretores nacionais escolhem, acabam hipnotizando quem está assistindo, pois você percebe o esforço de cada um para entregar um bom trabalho.” Comenta Mirielle.


Um começo para a valorização do nosso audiovisual é lutar para que as leis de incentivo continuem existindo e que as políticas públicas não deixem de contemplar o setor cultural, em paralelo, é necessário que o público brasileiro entenda o que ele gosta e dê a si mesmo a oportunidade de conhecer novos projetos, especialmente os que são produzidos aqui, deixando eventuais preconceitos de lado. Assim como algumas produções vêm ganhando espaço e reconhecimento no streaming, que o mesmo possa acontecer com o cinema, até para que os nossos projetos possam ser levados para outros países também. 

 
 
 

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