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03/10/2023 às 01h57min - Atualizada em 03/10/2023 às 00h55min

Demarcando telas, documentando resistências: conheça o cinema indígena brasileiro

Maria Eduarda Torres Cavalcanti - Revisado por Paola Pedro
O projeto pioneiro 'Video nas Aldeias' fortalece a produção audiovisual indígena no país há mais de 30 anos. (Foto: Reprodução/ UOL)

Mais do que entretenimento, o cinema é uma importante ferramenta de construção de sentido, pois o que se produz em tela vai além da história que está sendo contada: cria-se, também, uma leitura de mundo a partir da interpretação do espectador. Assim como todo produto cultural, a sétima arte se relaciona diretamente com a visão de seus idealizadores e as discussões da época em que está inserida. E houve um tempo — não muito distante —  em que os povos originários eram retratados pelos olhos do homem branco, que levaram a ideia de soberania da ‘civilização’ e o culto do ‘exotismo’ para o cinema nacional.

 

O resultado dessa apropriação ideológica foi uma primeira leva, iniciada no século XX, de produções cinematográficas caricatas e que, mais para frente, se mostraram um desserviço para as comunidades indígenas — que lutam até hoje para se desvencilhar tanto da imagem animalesca quanto do ideal ‘romântico’ disseminado pelo movimentos literários. Dois grandes exemplos de falsa representatividade são as adaptações indianistas “Iracema” (1919) e "O Guarani” (1996). Enquanto “a virgem dos lábios de mel” de Alencar reduz à mulher indígena a sexualização de seus corpos, ao salvadorismo branco e a ela se resume o dever de gerar o “fruto” da miscigenação, Peri representa a figura do “bom selvagem” —  que reforça uma postura de submissão em relação aos colonizadores. 

 

No livro “Pode o subalterno falar?” (1985), a teórica indiana Gayatri Spivak conceitua o fenômeno chamado de “outremização”, em que a relação entre o sujeito colonizado e o colonizador é marcada por um discurso hegemônico o qual determina uma unidade cultural, social e linguística como um modelo a ser seguido. Tudo que não se enquadra nesse ideal, é tratado com inferioridade. Daí surge a figura do outro, enfatizando uma visão distorcida do que é ‘civilizado’. Desde a invasão portuguesa, a “outremização” se fez presente nas terras tupiniquins, seja nos registros históricos, na catequização, na exploração dos corpos indígenas e, consequentemente, também foi transmitida para as produções cinematográficas. 

 

Do enfrentamento do ‘outro’ ao protagonismo 

 

Nos últimos dez anos, no entanto, esse cenário tem mudado. A luta pela retomada de terras pelos povos indígenas também se expandiu para o audiovisual, reivindicando o direito de contar sua própria história. Travando disputas pelos territórios físicos e imagéticos contra o colonialismo, nasce o verdadeiro cinema indígena, com cineastas e produções sob a perspectiva daqueles que, de fato, pertencem à identidade e à cultura.

 

A “Demarcação de Telas”, expressão cunhada pelo líder indígena e escritor Ailton Krenak caracteriza esse movimento afirmativo de se apropriar de espaços antes monopolizados por brancos para, através deles, ampliar o alcance das manifestações e conscientizar os não-nativos através da reeducação do olhar: o indígena passa a ser representado não mais como “herói” ou “selvagem”, mas sim como pessoa humana detentora de direitos e que também pertencem ao ambiente acadêmico, ao mercado de trabalho e à vida urbana. 

 

Ailton Krenak é um dos ativistas indígenas mais famosos da atualidade.

Ailton Krenak é um dos ativistas indígenas mais famosos da atualidade.

(Fonte: Reprodução / Alexandre Muniz)

 

A formação de coletivos de audiovisual desempenhou um papel fundamental na história do cinema indígena: é por meio deles que os povos originários construíram uma rede, tanto de incentivo à produção autoral de obras indígenas quanto de documentação dos registros que já existem. Um dos projetos mais recentes nessa estrada é o Katahirine — Rede Audiovisual de Mulheres Indígenas, que vem se dedicando ao mapeamento e fortalecimento da produção audiovisual de mulheres indígenas do Brasil e América Latina. 

 

O cinema indígena não é um só: é composto por diversas aldeias, cada um com seus saberes, olhares e narrativas. Pensando nisso, selecionamos três produções feitas por realizadores indígenas para você assistir. Confira: 

 

1. Ga-vi: a voz do barro (2022), realizado pelo COMIN FDL, Coletivo Nẽn Ga e Tela indígena

 

A animação recebeu o prêmio Lente Ancestral de Melhor Roteiro no 1º  Festival de Cinema da Cultura Indígena (FeCCI)

A animação recebeu o prêmio Lente Ancestral de Melhor Roteiro no 1º Festival de Cinema da Cultura Indígena (FeCCI)

(Fonte: Reprodução/ Youtube)

 

“E então eu perguntava para a minha avó: ‘quem são elas?’ e ela dizia que as ancestrais são as cascas do pinheiro”

 

“Ga-vi: a voz do barro” parte de um lugar íntimo: das memórias de Gilda Wankyly Kuita e Iracema Gãh Té Nascimento, lideranças indígenas do Sul do Brasil. A animação recupera as tradições do barro e da cerâmica, como forma de preservar a memória e passar adiante os saberes ancestrais para as novas gerações. Disponível no Youtube

 

2. A Última Floresta (2021), de Davi Kopenawa e Luiz Bolognesi

 

Davi Kopenawa, protagonista de 'A Última Floresta'

Davi Kopenawa, protagonista de 'A Última Floresta'

(Fonte: Reprodução/ Pedro J Márquez)

 

“Se os garimpeiros chegarem aqui de surpresa e darem presentes, espingardas, não aceitem! Espingarda não alimenta e o mercúrio faz a cabeça doer pelo resto da vida!”

 

O audiovisual indígena não está restrito ao passado, mas não se pode negá-lo: o genocídio dos povos originários e as marcas deixadas pelo colonialismo são sentidas até os dias atuais. O longa-metragem de Bolognesi com o roteiro assinado pelo líder indígena Davi Kopenawa trazem para as telas as tradições do povo Yanomami e sua resistência contra o desmatamento e o garimpo ilegal. Disponível na Netflix. 

 

3. Nossa Alma Não Tem Cor (2020), realizado pelo Olhar da Alma Filmes

 

Célia Xakriabá, professora e participante do documentário. É a primeira deputada federal indígena eleita por Minas Gerais.

Célia Xakriabá, professora e participante do documentário. É a primeira deputada federal indígena eleita por Minas Gerais.

(Reprodução/ Youtube)

 

“A primeira ditadura militar não aconteceu em 1964. Ela aconteceu na invasão do Brasil, quando tentaram negar o nosso território indígena.” 

 

Dirigido pelos cineastas Graciela Guarani e Alexandre Pankararu, o documentário é um registro de um encontro da Rede “Racismo e Anti-Racismo no Brasil: O Caso dos Povos Indígenas” ocorrido nos meses de maio e outubro de 2018, que reuniu pessoas indígenas de todo o Brasil. A produção aborda o racismo na perspectiva indígena, suas práticas implícitas e explícitas e os anseios das comunidades contra o governo Bolsonaro. Disponível no Youtube.

 

Apesar das represálias e da falta de políticas públicas para ampliar a produção, as obras indígenas vem ganhando destaque tanto na pesquisa acadêmica quanto em mostras e festivais nacionais e estrangeiros - a citar como exemplo o longa-metragem “Rama Pankararu”, dirigido por Pedro Sodré, vencedor da categoria de melhor filme na 14ª edição do Festival de Cinema de Triunfo de 2023. O cinema indígena segue lutando, ocupando telas, territórios e construindo novos espaços de manifestação do lugar de fala para que, assim, fortaleça a cultura e a identidade dos povos originários. Mergulhando nos rios de denúncia e conscientização, os caminhos da produção audiovisual indígena se cruzam com os da própria história latinoamericana: resistem, pois amanhã há de ser outro dia. 

 

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