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27/10/2023 às 00h46min - Atualizada em 26/10/2023 às 04h13min

Retratos Fantasmas: Um Tributo ao Recife que se foi — mas que tem seu legado imortalizado

Em um mergulho íntimo nas memórias do diretor, o longa-metragem indicado ao Oscar costura a história pessoal e artística de Kleber com a sua cidade natal, Recife, e os cinemas de rua da capital pernambucana.

Maria Eduarda Torres Cavalcanti - Revisado por Paola Pedro
O Cine Veneza, localizado na rua do Hospício, era um dos cinemas de rua mais populares do Recife. (Foto: Reprodução/ Cinemascópio)
“O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho” — Orson Welles
 
Pessoas atravessam e são atravessadas pelas cidades em que vivem de maneiras únicas. Há muito da nossa identidade nos espaços que frequentamos, nas experiências compartilhadas e nas tradições que passamos adiante. E é nesse lugar entre a vivência e a memória que moram os nossos afetos. Abraçando essa premissa, o cineasta recifense Kleber Mendonça Filho (‘Bacurau’) concebeu Retratos Fantasmas (2023). Dividido em três partes, o documentário nos conduz a um passeio íntimo pelas memórias do diretor e pelos espaços que marcaram a sua trajetória como pessoa e artista.
 
Aqui, vemos de forma mais delineada uma característica presente na filmografia de Mendonça: seu “cinema de território”, que busca reafirmar suas raízes e trazê-las para o centro da narrativa —  ora como fios condutores, ora como personagens. Neste caso, quem protagoniza a sua película intimista não é uma rua de classe média como em Som ao Redor (2012) e nem um edifício como em Aquarius (2016), mas sim o centro do Recife e especialmente, a vida e morte dos cinemas de rua da capital pernambucana — responsáveis por apresentar ao pequeno Kleber sua eterna amante: a sétima arte. 

Mapa afetivo dos antigos cinemas de rua do Recife, desenhado por Kleber.

Mapa afetivo dos antigos cinemas de rua do Recife, desenhado por Kleber.

(Foto: Reprodução/ Cinemascópio)
 
Além de falar sobre como os espaços constroem afetos, o longa frisa, sobretudo, a capacidade inerentemente humana de dar vida aos lugares — e sobre como o tempo avança, tanto contra quanto a nosso favor. Isso se torna evidente na primeira parte do documentário, quando somos convidados a entrar no apartamento em que o diretor viveu boa parte de sua vida e conhecemos a extraordinária Joselice: mãe de Kleber, que tinha no amor aos filhos e no lugar onde morava “a extensão de sua própria força”.
 
O que, à primeira vista, pode ser confundido com um filme que recorre à nostalgia de forma caricata e exaustiva, surpreende graças ao compromisso de Mendonça Filho em resgatar a história dos cinemas de rua e a sua majestosa montagem: a mescla de filmagens pessoais e de arquivo com registros atuais acabam por conjurar vida aos ‘fantasmas’ de seu passado. Pessoas e edifícios, que antes eram ruínas relegadas ao esquecimento, passam a ser eternizados em tela. De Nico aos cupins da casa ao lado, nada passa despercebido pelas lentes da câmera – pois da sétima arte nada foge e cabe a ela, com suas artimanhas, desafiar a morte. 
 
O São Luiz é um dos últimos cinemas de rua em atividade do país e está fechado há mais de um ano.

O São Luiz é um dos últimos cinemas de rua em atividade do país e está fechado há mais de um ano.

(Foto: Reprodução/ G1)
 
“Vou fechar o cinema com a chave de lágrimas” 
Mais do que uma carta de amor à sua cidade natal, Retratos Fantasmas descortina parte do panorama de descaso que os equipamentos culturais do Recife sofreram com a perda de poder do centro — e que enfrentam até os dias de hoje. Os anos de ouro se foram: os cinemas de rua — nossos antigos templos — foram demolidos para se tornarem igrejas e as marquises, nossos estandartes para as novidades, agora anunciavam o fim dos tempos. As salas escuras, que antes eram a ‘maior diversão’ no itinerário da cidade, se tornaram uma experiência pouco valorizada. O diretor de Bacurau (2019) assistiu a sua cartografia apaixonada, aos poucos, definhar: Art Palácio, Trianon, Veneza e, décadas depois, o São Luiz: o grande templo do cinema pernambucano. 
 
O “Em breve” com o gosto amargo de “Para Sempre”
Reconhecido como monumento histórico pela Fundarpe (Fundação de Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco), o São Luís é um dos últimos cinemas da velha guarda do país e estava a sete décadas celebrando o audiovisual até ter suas atividades interrompidas em maio de 2022 — e permanece assim, até então. O que veio depois, para inflamar ainda mais o clima de insatisfação, foi a demissão de funcionários antigos do cinema por parte do governo do Estado. Em carta aberta às redes, Kleber Mendonça cobrou posicionamento das autoridades e questionou o plano de gestão para a retomada do equipamento.
 
Após uma série de denúncias e críticas, a Secretaria de Cultura de Pernambuco anunciou, nas últimas semanas, que serão repassados R$3.300.000 via Lei Paulo Gustavo para a realização de reformas estruturais para a reabertura. Depois de um longo e tortuoso período de espera, nós, recifenses, seguimos vigilantes e esperançosos para ver os vitrais de flor de lís se iluminarem mais uma vez. 
 
Do recife ao tapete vermelho da maior premiação do cinema 
Logo após a estreia elogiadíssima nos festivais de Cannes e Gramado, o longa-metragem foi selecionado para representar o Brasil na disputa da estatueta de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2024. Apesar das tentativas de desmonte dos aparelhos culturais, o setor audiovisual do país segue resistindo e a indicação de Kleber Mendonça representa um momento de transformação no cinema nacional, em que novos sotaques e narrativas conquistam reconhecimento e espaço nos circuitos de premiação. 

Retratos Fantasmas surge como um lampejo de esperança em tempos difíceis e poder vislumbrar partes da história da cidade que cresci — mas que não era nascida para prestigiar, me faz ter um orgulho ainda maior daqueles que continuam lutando para que o audiovisual prospere. Graças a Kléber, celebramos, ainda vivos, os fantasmas de nossos pais e avós — que agora, também nos pertencem.

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