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07/11/2023 às 19h27min - Atualizada em 06/11/2023 às 23h14min

Sangue, Suor e Singularidade: isso (e muito mais) no Cinema de Horror Brasileiro

O cinema nacional se consagrou no horror com a genialidade de Mojica e, graças à nova safra de cineastas, continua a resistir em grande estilo — e à moda brasileira.

Maria Eduarda Torres Cavalcanti - Revisado por Paola Pedro
Divulgação / Acervo Particular de Carlos Primati

Era outubro de 1963 quando José Mojica Marins — cineasta amador que, anos à frente, assumiria a alcunha de pai do terror brasileiro — recebeu, em sonho, uma visita que mudaria a sua carreira para sempre: uma figura esguia, de capa preta e cartola, tentava arrastá-lo a todo custo para um túmulo com a data de sua morte. Um ano depois, em um Brasil cerceado pela ditadura, a estranha criatura de Mojica volta a aparecer — agora, nas vestes de um coveiro satânico com um ar vampiresco, interpretado pelo próprio diretor. Ele se põe a encarar a câmera e indaga o espectador: “O que é a vida? É o princípio da morte.” 

 

Assim, estrelou pela primeira vez no cinema o irreverente Zé do Caixão, no longa experimental À meia-noite levarei sua alma (1964) —  o primeiro a explorar o gênero do horror no Brasil. Assumindo o posto de vilão convicto, sem espaço para a redenção e com uma forte tendência a contrariar a moral da época, não demorou muito para que o personagem de Mojica se tornasse um fenômeno. A popularidade foi tanta que rendeu sequências de filmes, aparições na TV e Zé do Caixão, pouco a pouco, também conquistou reconhecimento no exterior.

O semeador do caos de unhas longas e vestes escuras a la Nosferatu se tornou alvo de interesse de diretores como
Roger Corman, Roman Polanski e, mais recentemente, de Elijah Wood (Frodo, em Senhor dos Anéis) — que está envolvido na produção de um reboot hollywoodiano do personagem ao lado dos diretores Daniel Noah e Josh C. Waller.
 

Ao ultrapassar as fronteiras brasileiras, Zé do Caixão ficou conhecido como Coffin Joe.

Ao ultrapassar as fronteiras brasileiras, Zé do Caixão ficou conhecido como Coffin Joe.

(Foto: Reprodução / Canal Brasil)

Zé do Caixão é um bicho-papão icônico que merece ser reimaginado para nossa cultura contemporânea. Estamos ansiosos para criar um novo filme que captura a arte sombria da criação singular de Marins para nosso mundo moderno.” — declarou Daniel Noah em comunicado ao Screen Mirror.


O que Orson Welles foi para o cidadão estadunidense em 1938 — época da transmissão radiofônica de Guerra dos Mundos, que assombrou os internautas ao noticiar uma suposta invasão alienígena nas terras americanas —, Zé do Caixão se tornou para o povo brasileiro da década de 70: o personagem, confundido com o próprio autor, se tornou uma lenda viva que pairava à espreita, em busca de vítimas para satisfazer seus desejos sanguinários. Unindo elementos do trash com a dramaturgia, Mojica Marins fez parte do período de vanguarda do horror nacional, ocorrido nos anos de 1970 e 1980, que tinham como marca a produção independente e de baixo orçamento. Ao seu lado, estava o diretor Ivan Cardoso, famoso por suas pornochanchadas misturando comédia e horror num estilo próprio, chamado de “terrir”.


Para os estudiosos do gênero, aqueles foram “os anos de ouro” do cinema de horror brasileiro: uma era onde existiam empreitadas corajosas, com salas de cinemas lotadas pelas nossas próprias assombrações — ainda que esse legado seja pouco lembrado nos dias de hoje. Mas se engana quem resume o terror nacional à figura de Zé do Caixão.

 

A Promissora Geração “Pós-Mojica”

Nos últimos dez anos, o setor cinematográfico brasileiro tem testemunhado uma retomada interessante no gênero do horror. O que antes era uma produção modesta e de nicho, agora ascende em um cenário ousado e inventivo, com uma nova safra de produções comprometida a explorar o terror em suas diversas nuances e propostas, sem deixar a brasilidade de lado. De histórias fantásticas que trazem de volta à vida — ora repaginado, ora preservando certos elementos — criaturas emblemáticas da cultura pop, passando pela mitologia folclórica, entidades fantasmagóricas até as tramas mais experimentais e de crítica social, a filmografia recente foge das ‘regras’ mais tradicionais do gênero e firma sua identidade em uma linha oposta dos blockbusters estadunidenses. 

 

Para Carlos Primati, crítico e pesquisador especializado em cinema fantástico, o grande mérito do horror brasileiro — e que o diferencia do modo de fazer hollywoodiano — está na produção “sem amarras”, que ao invés de reproduzir padrões estilísticos se volta para um cinema identitário, cujas temáticas, das universais às mais específicas, são trabalhadas a partir da realidade brasileira e das suas iconografias. “A regra é que o cinema feito em outras partes do mundo, como o brasileiro, têm uma tendência de serem mais fluídos em relação a gênero e não seguem uma regra narrativa previsível, que tenha o momento do susto, o momento de matar o monstro, e assim por diante. O horror brasileiro é autoral por excelência, com enredos originais, e constantemente se reinventa”, explica. 

 

Sem a prática de um cinema assumidamente comercial — com fórmulas bem definidas,  cujo resultado é uma série de produções “mais do mesmo” que saturam a indústria com sagas, remakes e reboots que giram em torno do mesmo universo narrativo (Halloween, Jogos Mortais, Invocação do Mal) —, resta o imprevisível e é dele que o horror brasileiro se apropria e eleva a quarta potência. Estabelecendo seu próprio ritmo e linguagem narrativa, os cineastas da nova geração prometem ao público um mergulho cheio de personalidade no desconhecido. 

Murílio Benício, ao lado de Luciana Paes, protagoniza o slasher psicológico Animal Cordial.

Murílio Benício, ao lado de Luciana Paes, protagoniza o slasher psicológico Animal Cordial.

(Foto: Reprodução / UOL)

Duas grandes produções à frente dessa nova era do cinema de terror — e que delineiam essa diversidade da produção nacional — são Animal Cordial (2017), de Gabriela Amaral, e Morto Não Fala (2018), dirigido por Dennison Ramalho. O slasher psicológico ambientado num restaurante de classe média paulistano de Amaral e a trama de vingança do legista Stênio, que amarra o sobrenatural à cultura punitivista no contexto brasileiro, conquistaram destaque fora do país, além de colecionar elogios da crítica. 

 

Um nome forte dentro do horror nacional — e que traz o Nordeste para o circuito de produção — é o de Guto Parente. O diretor cearense realizou, em 2018, o longa-metragem Clube dos Canibais. A trama gira em torno do casal Otávio (Tavinho Teixeira) e Gilda (Ana Luiza Rios) em uma sátira sobre a exploração, literalmente predatória, das elites brasileiras sobre as classes desfavorecidas da sociedade. Na visão de Guto, o que define o sucesso de um filme de terror no Brasil é relativo.

 

“Se pensarmos em sucesso de público, considerando apenas os números de ingressos vendidos nas bilheterias do cinema, ainda não podemos falar em sucesso de nenhum filme de horror brasileiro. Mas se o sucesso de público for medido por visualizações de cópias piratas dos filmes que vazam no youtube ou no torrent, por exemplo, eu diria que alguns filmes de horror brasileiro são muito bem sucedidos. Como medir o interesse por um filme? Sobreviver à passagem do tempo talvez seja o melhor indicativo possível de sucesso”, declara o cineasta. 


“Elas” à Frente do Gênero

Releitura do conto da Medusa, Anita Silveira faz uma crítica severa ao machismo e ao fanatismo pentecostal

Releitura do conto da Medusa, Anita Silveira faz uma crítica severa ao machismo e ao fanatismo pentecostal

(Foto: Reprodução / Vitrine Filmes)

Outras obras excelentes que tiveram o mesmo destino foram assinadas pelas diretoras Juliana Rojas, que traz a figura do lobisomem numa história de amor queer e maternidade em Boas Maneiras (2018), e Anita Rocha da Silveira, a mais nova musa do gênero, com o horror feminista Medusa (2021), disponível na Globoplay. Um dos aspectos a se celebrar aqui no Brasil e que vai na contramão do cinema internacional, é que grande parte das produções consagradas como referência do gênero são feitas por mulheres. 

 

Gabriela Larocca, historiadora e podcaster do República do Medo, aponta novos rumos para o cinema de horror brasileiro: “Embora exista uma crise de falta de fomento no audiovisual como um todo, o horror nacional continua firme e forte, com realizadores e espectadores dedicados ao gênero. A experimentação e ousadia sempre foi uma marca do cinema brasileiro mas hoje, quando se fala de novas formas de horrorizar o público, penso em nomes como Gabriela Amaral e Juliana Rojas. Mulheres, cada vez mais, vem tomando as rédeas desse gênero. Destacar isso é muito importante”, afirma Larocca. 

 

O Cinema é, sobretudo, arte e como toda expressão humana, não está isento das discussões e transformações de seu tempo: o olhar feminino, dotado de uma sensibilidade majestosa, deixa sua marca nesse movimento. Gabriela Amaral, junto com Rojas e Silveira abriram espaço para que narrativas femininas e feministas — despida de estereótipos sexistas — fossem valorizadas. O caminho foi traçado e com ele, fica o convite para novas “final girls” se aventurarem no gênero e contarem suas próprias histórias. 

 

O esforço contínuo para deixar de ser nicho e se tornar indústria

Embora tenha sido abraçado pela crítica, festivais e pela cobertura midiática, o horror brasileiro ainda luta para se tornar suficiente em si mesmo, do ponto de vista rentável e de formação de público. Mesmo com o gênero em alta, tanto no cinema com a Trilogia de Suzane Von Richthofen quanto na podosfera — a exemplo de A Mulher da Casa Abandonada, produção de sucesso da Folha de S Paulo — o cinema de horror brasileiro não ocupa salas de cinema e pouquíssimos ainda são as obras que ganham sobrevida nos streamings. Seu sucesso não é pautado em grandes bilheterias nem nas métricas pouco qualitativas das plataformas digitais. Isto é: não há investimento suficiente nem distribuição adequada para fazer o horror nacional chegar ao grande público. 

 

A crise não é exclusiva do gênero, já que o descaso é sintomático em toda cadeia audiovisual — observado, de forma mais nítida, no governo Bolsonaro. Fazer cinema de gênero continua sendo uma realidade arriscada no país e o desafio é o de alcançar uma posição sustentável dentro do mercado nacional, expandindo sua visibilidade para além dos críticos e fanáticos pelo gênero. Para Calebe Lopes, cineasta independente, a dificuldade de firmar um cinema dessa natureza no país vai além do financiamento e da distribuição: 

 

“Fazer filmes de terror no brasil é lutar para encontrar o público e, quando encontrar, ser recebido com descrença. O Brasileiro já olha desconfiado para qualquer filme feito no país, quanto mais um filme de terror, esse gênero que foi tão sequestrado pelo imaginário hollywoodiano. Tivemos nosso olhar adestrado, colonizado, pelo cinema estadunidense, de modo que o que hollywood faz nos soa o ‘nacional’, e o filme brasileiro soa estrangeiro”, destaca o diretor baiano. 

 

Ao pensar no que pode ser feito para mitigar essa questão, Calebe destaca um plano de soluções a longo prazo: “Desde a escola, inserindo cinema brasileiro na grade curricular. se combate também com cotas de tela, tanto para salas de cinema quanto streaming e tv. e se combate com muita conversa, com o assunto sendo trazido à mídia, aos principais veículos, à internet. É um trabalho de formiguinha pelo qual vale a pena morrer”, enfatiza. 

 

Mesmo diante de impasses e incertezas, um novo capítulo da história do cinema de horror brasileiro está sendo escrito e com ele, uma corrente de cineastas talentosos e que representam minorias políticas ganham vez e voz. O desfecho daqueles que vivem “na periferia do mundo” é imprevisível tanto nas telas quanto na realidade, mas uma coisa é certa — enquanto existir resistência, haverá grandes surpresas pelo caminho.

 

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