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10/12/2023 às 13h41min - Atualizada em 05/12/2023 às 02h58min

A balada psicodélica de Cracker Island

Gorillaz retorna aos holofotes mantendo frescor e ousadia em seu oitavo álbum de estúdio

Maria Eduarda Torres Cavalcanti - Revisado por Paola Pedro
(Foto: Reprodução / Billboard)

Antes dos cabos de internet cruzarem os oceanos e as telecomunicações arquitetarem o que viria a ser um sistema global de rede — forjado, em altíssima velocidade, pela hiperconectividade da web, houve um tempo em que a televisão era a vitrine da modernidade. A Music Television, popularmente conhecida como MTV, estreou em grande estilo, com a canção-manifesto “Video Killed The Radio Star”, e transformou a indústria fonográfica de formas jamais vistas: as performances musicais exibidas no canal televisivo ultrapassaram as fronteiras do entretenimento, propagando valores e estilos de vida quase tão sedutores quanto os astros que estavam à frente daquele espetáculo de som e imagens em movimento. Capturando a juventude nas cores e grafismos, a MTV se tornou a maior referência na descoberta de novos artistas e graças às suas possibilidades de alcance — inéditos para a época , emplacar nas paradas da emissora estadunidense se tornou um pré-requisito para músicos conquistarem o sucesso. 

 

O mundo parecia ter atingido o auge da inventividade com a popularidade da caixa colorida. Mal se sabia que a verdadeira revolução estaria para chegar muito em breve, em uma engenhoca capaz de processar um grande volume de informações e transcender os limites do imaginável: a internet. E na virada do milênio, enquanto o medo de um grande colapso nos sistemas de computadores tomava a população, surgia o Gorillaz: a testemunha de novos tempos. 

 

O amanhã que veio antes do previsto

Em 1998, Damon Albarn, ex-vocalista da banda de britpop Blur, e o quadrinista Jamie Hewlett deram início a uma empreitada que, mais para frente, seria vista como uma espécie de vanguarda da indústria fonográfica: criaram uma banda composta por integrantes que não eram de carne e osso. Os bytes deram vida a um baixista meio reptiliano disposto a tudo pela fama, um vocalista de olhos brancos, um mestre de percussão que leva os espíritos dos amigos debaixo do boné e uma garotinha treinada para ser uma arma de guerra do governo japonês: Murdoc, 2-D, Russel e Noodle. O Gorillaz.

Uma banda virtual de primatas comprometidos a explorar os gêneros musicais e as tecnologias disponíveis para entregar um projeto multimídia no mais alto grau de conceito: este é o propósito por trás da criação visionária da dupla Albarn e Hewlett. Desde a primeira aparição em Clint Eastwood — single que compõe o Gorillaz (2001), álbum de estreia da banda, e a escalada colossal de seu sucessor, Demon Days (2005), o quarteto excêntrico se revelou uma aposta promissora, conquistando gerações com críticas sociais embrulhadas numa combinação de sons e colaborações únicas. O rock apocalíptico de Feel Good Inc que denunciava a exploração da indústria musical através de um baixo furioso e o arranjo de coro infantil mesclado a rimas potentes de Dirty Harry contra a Guerra do Iraque eram apenas o início de uma banda que está na estrada — entre um hiato e outro — há mais de vinte anos.

Com personagens tão peculiares, Damon Albarn e Jamie Hewlett não poderiam deixar passar a oportunidade de criar um universo narrativo à altura dos primatas, filhos da tecnologia. E assim o fizeram, com uma abordagem conceitual estruturada em aventuras mirabolantes que conectam toda a discografia. Há pouco mais de duas décadas, acompanhamos o quarteto combatendo horda de zumbis, fugindo de ilhas flutuantes e até mesmo dando uma festa no espaço — eis o estranho e fascinante mundo do Gorillaz. 

A revolução está na palma das mãos, a um deslize de tela

Movido pela sede de inovações, o mundo caminha a passos largos impulsionados pelas tecnologias que o cercam. A sociedade MTV, fascinada pelos videoclipes altamente produzidos de estrelas mainstream da cultura pop, deu espaço para os nascidos em uma era de telas portáteis, cujos ícones e legados são cada vez mais prematuros, substituídos à medida que outros surgem, numa velocidade que beira o absurdo. É nessa realidade hiperconectada com toques apocalípticos que o quarteto retorna as plataformas, palcos do nosso tempo, em seu oitavo álbum de estúdio: Cracker Island, lançado em fevereiro de 2023.

Inicialmente pensado como um segundo volume do projeto de colaborações Song Machine: Strange Timez (2020) — deixo aqui meus elogios à belíssima Pink Phantom, com a participação de Elton John, e a divertidíssima Pac-man, que presta homenagem à série de jogos de mesmo nome, o disco passou por uma série de mudanças até chegar ao seu estado final e nos entregar uma deliciosa balada psicodélica, povoada de mensagens sobre o culto aos influencers, os limites da inteligência artificial e a urgência da crise climática. O álbum traduz a veia experimental da banda ao mergulhar num tecnopop às alturas, sem deixar de incorporar novos horizontes musicais, como o reggaeton e funk. Enquanto Tormenta, em parceria com Bad Bunny, é como tomar um gole de coquetel tropical numa tarde de verão, a faixa Controllah entrega o funk paulistano de Mc Bin Laden à moda Gorillaz — e o resultado é um delicioso batidão alternativo que vai grudar na sua mente, pode apostar.

 

O disco começa nos dando uma descarga de adrenalina desde as primeiras notas com Cracker Island, canção que assina o título do álbum, em parceria com o multi-instrumentista Thundercat. A balada de sintetizadores cumpre, com honras, a responsabilidade de dar o “play” na mais nova aventura mirabolante do quarteto animado. A faixa Oil nos recebe na sequência, com os versos melancólicos de 2-D e a voz aveludada da ex-Fleetwood Mac, Stevie Nicks, num desabafo sobre solidão e fragilidade dos relacionamentos contemporâneos. A seguir, imergimos num som cadente e mais sensorial que nos leva a descobrir uma nova textura musical a cada ouvida, em Tired Influencer. Imersos na monotonia do cotidiano de um influencer, a sonoridade nos transmite a sensação de desgaste, como se estivéssemos presos em um luto por algo-ou-alguém que não sabemos, ao certo, o porquê. A meu ver, é um lamento pela morte da nossa própria espontaneidade — que parece, muitas vezes, deixar de existir na realidade coreografada das redes. 

 

A colaboração com Adeleye Otomayo, Silent Running, numa mistura de xilofones e sintetizadores que remetem às baladas dos anos 80, potencializa o discurso, regado de metáforas, sobre o rolar infinito das telas para escapar do mundo real. Os versos “Parece que eu estava correndo silenciosamente / Através de infinitas páginas, eu deslizo / Procurando por um novo mundo / o desperdício do pôr do sol” também revelam como os aparelhos eletrônicos se transformaram em uma necessidade vital, ofertando doses de estímulo momentâneas que colocam os usuários num estado de hipnose.

O reflexo de uma sociedade que encontra, ao mesmo tempo, conforto e angústia ao “desaparecer” na maré de conteúdos on-line. Na música
New Gold, Tame Impala e o rapper Bootie Brown apostam em um groove encorpado, numa combinação fluída de indie e hip hop, com direito a críticas — ainda que veladas, aos NFTs: uma espécie de selo digital que comercializa a ideia de ”exclusividade” de uma obra. Passando por Baby Queen e Tarantula, duo de composições em homenagem a uma princesa tailandesa que assistiu a um dos shows da banda Blur, em 1997
— e que resgatam o lado emotivo de Albarn, seguimos para a nona faixa do álbum da versão deluxe, Skinny Ape. Nela, o líder de cabelos azuis assume um vocal que soa quase como uma pregação — o que lhe cai muito bem, se pensarmos em 2-D como a representação dos “falsos santos” que idolatramos. Somos recebidos por arranjos acústicos que são elevados ao seu máximo, num tipo de grito primal que só o Gorillaz é capaz de produzir. 

Assim como as discografias anteriores, Cracker Island segue religiosamente a marca registrada do Gorillaz: a valorização da narrativa, desenhadas com muita maestria pelos videoclipes — de visual impressionante, diga-se de passagem — que servem como uma janela direta para a compreensão da obra e do universo fictício do quarteto. Após a destruição do estúdio da banda visto em The Lost Chord, última faixa conceitual de Song Machine, 2-D e seus companheiros se mudam para uma mansão na colina de Silver Lake, localizada em Los Angeles, para escrever um novo disco quando são convencidos por Murdoc — que já tinha seus flertes com o sobrenatural, a fundar um culto chamado de “The Last Cult”. Uma alusão às seitas religiosas que estamparam manchetes de tabloides americanos e viveram nas sombras da terra das estrelas, Hollywood. O quarteto, no entanto, se envolve em um confronto com o “Forever Cult": um culto famoso na região que acredita na vida eterna. 
 

Não é preciso nem dizer que Damon Albarn, a mente por trás da banda animada, utiliza dos artifícios da ficção para explorar temas do cotidiano. Nesta nova fase, que herda um pouco da psicodelia do sexto álbum de estúdio, The Now Now (2018) — mesmo que assuma o papel de “gêmeo do mal”, com uma atmosfera mais melancólica, a nova aposta do Gorillaz traça fortes paralelos com a realidade. A “ilha dos divididos” espelha o território inóspito das redes sociais e como elas são responsáveis por criar o que chamamos de câmaras de eco: espaços em que crenças e ideias semelhantes se retroalimentam, colocando os indíviduos dentro de “bolhas” de interesse, como os “pequenos cultos” de grupos on-line e rodas de seguidores que, inocentemente, fazemos parte — e digo isso, claro, num tom bem-humorado de sátira. 

Apesar de não ser um projeto tão ambicioso quanto a ilha de resíduos sanitários com suas canções anti-descartabilidade do veterano Plastic Beach (2010), que despiu a sociedade do consumo em composições primorosas e habilmente elaboradas, Cracker Island nos presenteou com um retrato acertado do mundo em que vivemos, cujas fronteiras entre a realidade e o digital se tornam cada vez mais frágeis. Numa coletânea enérgica, Murdoc, 2-D, Russel e Noodle — que carinhosamente apelido de "profetas do apocalipse", abriram caminho para uma experiência sonora equilibrada e coerente, mesmo desfrutando de referências musicais tão distintas e que, dificilmente, seriam imaginadas cocriando juntas. Mas é aí que esta parte da magia da banda: o “fazer música” do Gorillaz é imbuído de certa ousadia e espírito ao não se limitar às convenções pré-estabelecidas da indústria.

Você nunca sabe o que esperar — e há quem desgoste e quem aprecie essa surpresa. O álbum composto por quinze faixas em sua versão estendida provou que a banda de primatas meio-humanoides, mesmo colecionando mais de duas décadas de carreira, ainda tem muito a mostrar. E quem assina este texto segue esperançosa para testemunhar novos frutos da genialidade de Albarn.

 

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