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09/10/2022 às 10h37min - Atualizada em 08/10/2022 às 22h38min

O Brasil profundo e desconhecido em Torto Arado

Romance de Itamar Vieira Junior explora os rincões do sertão brasileiro

Madson Lopes - Revisado por Flavia Sousa
Torto Arado, publicado em 2019 pela editora Todavia. (Foto: Reprodução/culturadoria).
Publicado originalmente em Portugal, em 2018, chegando ao Brasil no ano seguinte pela editora Todavia, Torto Arado tem sido definido como um acontecimento, que, de tempos em tempos varre o universo da literatura. Somando aos prêmios Oceanos, Jabuti e LeYa, o sucesso de vendas do romance supera os livros de autoajuda, os mais consumidos no país. Além disso, a obra pode chegar às telas a partir do próximo ano pela HBO Max e alcançará mais público.

Poucos livros nacionais contemporâneos foram tão bem aceitos quanto este do escritor baiano Itamar Vieira Junior. Embora os principais temas abordados na obra como o racismo estrutural, herança da escravidão no país está em pauta nos últimos anos, o autor acredita que o sucesso do livro deve-se ao mergulho que ele faz em um Brasil profundo, rural e desconhecido para muitos. Segundo Itamar: “O Brasil quer conhecer o Brasil”.


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Brasil rural

Ambientado na Chapada Diamantina, interior da Bahia, o romance acontece na fictícia Fazenda Água Negra onde vive o curandeiro Zeca Chapéu Grande, sua esposa Salustiana Nicolau, Bibiana e Belonísia, suas duas filhas. Uma família pobre e preta vivendo em situações análogas a escravidão trabalhando somente pela estadia na terra.

Os moradores que viviam na fazenda Água Negra: “podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra. Podia colocar roça pequena [...] nada que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono da fazenda, afinal, era para isso que se permitia a morada”. Conta Bibiana, filha mais velha da família e primeira a se indignar com o estado de servidão em que viviam.

Essa realidade parece distante e datada, mas o livro dá pistas da época em que os personagens viviam. Citando algumas vezes o governo militar e também uma Ford Rural, automóvel produzido no país entre 1972 a 1977. É possivel afirmar que o livro está situado entre 1960 chegando aos anos 2000. Além disso, Itamar Vieira afirma ter se inspirado em situações reais, de pessoas vivendo em estado de servidão, nas quais ele presenciou trabalhando como geógrafo nos sertões da Bahia, Maranhão e Piaui.

A forma como o autor vai usando o cenário e a trama para expor e denunciar os atrasos do país não diminui a beleza da obra e riquezas de personagens, principalmente o protagonismo feminino, aliás, o livro é narrado em primeira pessoa por três vozes femininas. Em algum momento essas mulheres e os moradores de Água Negra vão lutar pelos seus direitos, quando isso acontece o livro se torna voz de pessoas que em geral não são ouvidas: os camponeses, ribeirinhos, os povos indígenas, as mulheres quilombolas, os agricultores pobres e semianalfabetos.


Vozes femininas

A personagem Belonísia é símbolo dessas pessoas que lutam sem voz. Ao sofrer um acidente ainda criança, ela perde parte da capacidade de se comunicar, então desiste de estudar e passa a dedicar integralmente aos cuidados da roça. Porem, já casada, e sofrendo abusos psicológicos do marido, ela tenta recumperar a fala. Começa, então, exercitando sua dicção repetindo à palavra “Arado” - mostrando sua relação com a terra – tenta pronunciar o nome, más não consegue, a palavra sai “torta”, ininteligível, de sua boca. Daí Torto Arado.

É interessante pensar que, a protagonista sem fala é a mesma que sofre abusos psicológicos e ver outras mulheres sofrendo abusos físicos na fazenda: “todas nós, mulheres do campo, éramos um tanto maltratadas”.  Isso é uma metáfora clara acerca das incontaveis mulheres brasileiras que não são ouvidas, que são ignoradas, silenciadas, e que não conseguem denunciar seus agressores.



Brasil de Religiões

Chama a atenção nesse livro, a figura do patriarca Zeca Chapéu Grande. Ele é o líder dos trabalhadores que moram na fazenda. Mas também é uma espécie de curandeiro do Jarê, religião sincrética de matriz africana que no Brasil é praticada apenas na região da Chapada Diamantina.

Nesse aspecto, Itamar Vieira Jr se assemelha com o escritor Jorge Amado. Diferente das literaturas urbanas, o autor conserva as tradições literárias rurais, e não coloca a religião como um fator alienante ao povo, mas oportuniza varias reflexões quanto ao papel da religião nas lutas do povo: como ela ajuda a unir organicamente uma comunidade de pessoas, a fortalecer os sujeitos nos momentos de humilhação e agressão.

O curandeiro, Zeca Chapéu Grande, tinha o respeito de todos os que viviam em Água Negra, até mesmo dos donos da terra. Mesmo sendo sujeito aos trabalhos servil como todos os outros moradores, foi ele o responsável por trazer escolas e outras melhorias para a região. Ele também cuidava para que nenhum morador fosse maltratado. Sábio, tranquilo, gostava de ensinar suas filhas os saberes populares do sertão: “O vento não sopra, ele é a própria viração”dizia.

Em um momento em que a intolerância religiosa se espalha pelo país. E a cultura afro-brasileira é perseguida por algumas comunidades cristãs, Torto Arado é de extrema importância. Para abraçar o desafio de conviver respeitosamente com o pensamento diferente, Torto Arado é urgente. Quando os pilares que sustentam a democracia estão postos em dúvidas, e a possibilidade real do Brasil está caminhando para um retrocesso democrático, a leitura desta obra é indispensável.

 
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