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30/03/2023 às 19h04min - Atualizada em 27/02/2023 às 10h08min

O acolhimento à diversidade promovido pelas religiões de matriz africana e a abrangência da comunidade LGBTQIA+

Paula Neiman - Editado por Nicole Bueno
 

“Ele segurou na minha mão, pediu para eu levantar, colocou o chapéu na minha cabeça e me girou com a mão. - como um pião -  na quinta volta eu quase caí e ele me parou, devolveu o chapéu para a sua cabeça e falou ‘fiá você entendeu?’ e depois daquele dia eu nunca mais parei de ir na macumba.” Na primeira vez que Paula Corrêa, mulher lésbica, foi na umbanda, ela sentiu um arrepio nas costas e ouviu músicas que ela jamais havia escutado, e mesmo assim começou a cantar as letras exatamente como se tivesse seu nome na composição da canção. Apesar dos sinais claros da sua conexão desde o início, ela duvidou da sua missão, não tinha certeza se era para estar ali e a cena da figura que, -  hoje se encontra como chefe do terreiro em que ela frequenta - colocando e tirando o chapéu da sua cabeça, é extremamente simbólica sobre a importância deste “chamado”. Após viver uma infância frequentando o espiritismo, legado de sua família, após se entender como uma mulher lésbica, passou na pele um preconceito velado, de uma religião que se propõe a não ser preconceituosa mas, na sua vivência, é de formas muito sutis, através de “explicações” sobre a sua sexualidade e equiparando-a com karmas. Após deixar de lado todas as religiões por quase meia década, ela passa por um processo depressivo e decide buscar se encontrar. E após os primeiros contatos com o terreiro, ela entende que está no lugar certo onde ela pode ser quem é. A sua primeira vez, foi ao lado de uma antiga namorada, e essa cena é por si só, uma ilustração do acolhimento. Em um determinado momento, ela comenta “eu olhei para a minha ex-namorada e disse ‘é aqui, é o isso."'

 

“Me senti acolhido no terreiro como nunca me senti em nenhum outro espaço”, com Sérgio Fajardo, homem gay, comunicador pesquisador das religiões de matriz africana, a história foi diferente, mas o acolhimento à sua subjetividade foi o mesmo. Sérgio, diferente de Paula, não narra a história da sua primeira ida a um terreiro como ilustração da sua relação com a fé, porque quiçá lembra da primeira vez que ouviu o bater dos tambores.

 

Ele é frequentador das rodas de religiões de matriz africana desde que se conhece por gente, e quando se apresenta diz que é muitas coisas, principalmente macumbeiro. 

“Quando as pessoas me perguntam quando eu ‘saí do armário’ eu sempre digo que eu meio que nunca entrei - todos nós entramos de alguma forma - mas o meu armário sempre teve as portas mais abertas, porque eu sempre frequentei o batuque.” O comunicador se considera uma pessoa religiosa, mas como bom brasileiro diz que mescla a vida profana com a vida espiritual com maestria e risadas. Sua principal fala sobre a religião, é que encontrou nos terrenos dos orixás a coragem que precisava para ser quem se é. E hoje, pesquisa ativamente as religiões africanas principalmente sobre a oralidade, como forma de agradecimento ao que constitui a sua existência.  

 

“Eu tive depressão profunda por 2 anos. Naquela fase eu pensava muitas coisas ruins. Mas, o que me mantinha em pé, é que eu sabia que não estava sozinho, meu pai Ogum estava comigo,” conta Herik Nunes, homem trans que encontrou desafios em seu período de transição dentro de espaços religiosos, mas diz que quem o manteve em pé, foi o seu pai religioso. “Eu vejo muita gente que procurou fé na igreja, e a igreja dizia que aceitava mas que queria que a pessoa mudasse. A minha religião me aceita exatamente como eu sou, me ama como eu sou, não quer tirar nem mudar nada.”

 

Religiões dificilmente são sinonimo de acolhimento há subjetividades, quando se trata de pessoas LGBTQIA+, a própria proibição de igrejas católicas ou evangélicas ao casamento gay, prova que mesmo que o debate tenha avançado na sociedade como um todo, há aceitação por parte de diversas pessoas, mas “da igreja para fora.”
As histórias das pessoas frequentadoras de religiões de matriz africana, vem de outras perspectivas, e uma das explicações, é o fato de ser uma religião matriarcal que além de romper com os padrões brancos eurocêntricos, também desvia da rota patriarcal que somos inseridos na sociedade. O candomblé, macumba, quimbanda, umbanda e tantas outras, possuem a mesma raíz, a força das mulheres negras. 

 

“Eu aprendi a ser mãe, sem ter filhos. Aprendi a falar o que pode e o que não pode, lidar com as idades, colocar limites e entender que cada pessoa lida de formas diferentes. Lido com eles como a mãe que sou.” Raika Severo, é uma mulher trans que faz parte da sua casa de religião há 21 anos, e que possui o cargo de mãe pequena, ou seja, abaixo do pai de santo está ela como cargo mais alto e na falta dele, ela que assume todas as responsabilidades.  Para Raika, que sempre foi ativa religiosamente, entrar para o terreiro foi se encontrar verdadeiramente. 

Ela frequentou ativamente a igreja católica, por anos deu curso de noiva, de batismo e frequentava de forma ativa a religião. Porém, ela não se sentia ela mesma, “na igreja católica, independente das minhas ações, o que as pessoas julgavam era a minha sexualidade,” e explica que decidiu sair da igreja porque estava em transição e não conseguia se sentir pertencente a religião. “E foi quando eu pisei no terreiro, com os pés no chão, que eu soube que ali era o meu lugar.”

 

As casas podem ser geridas por mulheres cis ou trans, e majoritariamente são. Para a sociedade, é um rompimento da lógica machista e homofóbica, os casos de casas que possuem em maior cargo mulheres trans, “E às vezes nós pensamos, como pode um homem hétero dar sua cabeça para fazer uma obrigação na mão de uma mulher transexual? Isso rompe as lógicas sociais. Porque no terreiro não se vê desse lugar, se olha para o espiritual ", comenta o pesquisador, Sérgio Fajardo. 

 

Apesar das religiões abarcarem a diversidade das pessoas, o lado terreno, racional, ainda é um  desafio. Pois, cada pessoa entra na religião com seu repertório e as pessoas que frequentam os terreiros também estão suscetíveis aos casos de preconceito.  “Eu frequentei uma casa durante 13 anos, e então fui para Dublin decidir não voltar, precisava me afastar um pouco de tudo. E quando entendi que precisava voltar, cheguei falando que sou um homem bi, compartilhando o que havia entendido sobre mim e sofri preconceito das pessoas,” conta Douglas Porto Moreira que iniciou sua trajetória aos 14 anos, contrariando a sua família parte evangélica e parte católica, e abarcou sozinho na umbanda, pois se sentiu convocado. “Foi muito difícil entender que aquelas pessoas que me acolheram quando eu cheguei sozinho, agora estavam sendo preconceituosas.  A entidade, o mundo espiritual me acolheu, me abraçou, entendendo o meu querer e meu sentir. Mas, as pessoas, o lado humano, racional, físico, não entendeu e apenas questionavam." 

Ele explica que, por ter entrado na religião tão novo, adquiriu muitas responsabilidades e decidiu se mudar para a Europa para tentar se afastar do peso que estava tendo. Porém, após um certo tempo nas terras europeias, encontrou uma casa de religião africana com brasileiros e entende muito sobre si e sobre a importância do seu pertencimento dentro da religião. Após a sua volta, passou a frequentar outra casa, a qual frequenta com seu companheiro até hoje, e encontrou pessoas que promoviam a diversidade dentro e fora das paredes das casas religiosas. 

A existência das religiões de matriz africana também rompem com os padrões individualistas da sociedade e propõe a união da coletividade, conforme comenta a filósofa
 Sueli Carneiro, "Quando a sociedade capitalista, através das relações sociais de produção que estabelece, reifica o individuo, desumanizando suas relações; quando propõe uma visão individualizante de mundo, destruindo núcleos comunitários remanescentes de outros momentos históricos; quando fundamenta uma ciência que tem como tarefa a dessacralização da cultura, forjando seu reino na terra, parece significativo o fato do candomblé se expandir vertiginosamente, levando-nos a crer que este se coloca como uma forma de resistência à fragmentação da existência do homem brasileiro, seja no plano concreto, seja no plano ideal da explicação ontológica."


 

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