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10/03/2023 às 12h14min - Atualizada em 08/03/2023 às 21h06min

Condução ao inferno: o maestro em Tár e Whiplash

Em um espaço de quase 10 anos de diferença, o filme de Todd Field trabalha com a figura do maestro brilhante e problemático, também utilizada em Whiplash (2014).

Júlia Vasconcelos - Revisado por Joyce Oliveira
Cate Blanchett em cena do filme 'Tár'. (Reprodução: Focus Features)
Contrariando os estereótipo os maestros fazem mais que reger instrumentos e vozes em uma performance. Além de fazer marcações rítmicas, o regente conduz a potência, o momento que cada instrumentos devem entrar, assim como toda atmosfera da apresentação, seja ela romântica ou dramática. Esse trabalho é visível nos logas Whiphash, de 2014, e Tár, lançado em 2022 e indicado ao Oscar desse ano.

Entretendo, fica a dúvida: todo maestro ou maestrina
são iguais? É o que vamos analisar ao fazer um comparativo entre a maestrina do filme Tár, e o mastro de Whiplash trazendo as singularidades e diferenças entre eles.

O filme de Todd Field, indicado ao Oscar 2023, é centralizado em Lydia Tár. A maestrina bem-sucedida, que rendeu a Cate Blanchett sua oitava indicação ao Oscar, preenche a tela e a narrativa com sua magnitude. Não é de se estranhar que o título da obra leve apenas as três letrinhas de seu sobrenome.

Já em Whiplash, dirigido por Damien Chazelle, a narrativa não gira em torno de Terrence Fletcher, o renomado regente e professor do conservatório de música Shaffer. A instituição fictícia é a melhor escola de música dos Estados Unidos, mas, para os estudantes do conservatório, honra mesmo é ser escolhido por Fletcher. Este privilégio é para poucos.

Na verdade, a narrativa segue a jornada de Andrew Neiman, o jovem baterista de jazz que é escolhido pelo maestro logo no primeiro ato do filme, na busca por tornar-se um dos maiores músicos da história. Isso explica o acréscimo da frase “Em Busca da Perfeição” ao título utilizado no Brasil. A figura do maestro, então, toma a posição de um personagem coadjuvante. Ou seria a de um antagonista?




O personagem de J.K. Simmons, que também foi indicado ao Oscar pela interpretação do maestro, assume um caráter muito mais “vilanesco”. Tár, por outro lado, trabalha bastante com as entrelinhas.

Lydia Tár e Terrence Fletcher se encontram

O grande ponto de convergência entre ambos os filmes não se limita ao universo musical no qual as narrativas são tecidas. O que Lydia Tár e Terrence Fletcher têm em comum, além de serem maestros e professores, é o poder.
 
Ambos detêm as vantagens da autoridade e do status profissional dentro de suas relações desiguais desenvolvidas na delimitação do espaço no qual eles exercem influência. Quando Terrence entra na sala o silêncio é imediato e a tensão é palpável até do outro lado da tela.

Charlie Parker se tornou o Bird porque Jones jogou um prato [de bateria] em sua cabeça.” A fala do maestro para Neiman, o protagonista de Whiplash, elucida bem sua filosofia de ensino. Para ele, os fins justificam os meios.



O foco do poder de Lydia, por sua vez, emana da sua capacidade de sedução e manipulação. Seu comportamento abusivo, portanto, manifesta-se de maneira mais sofisticada, pelo menos até onde temos acesso visual.

A linha pela qual os maestros seguem norteia Tár e Whiplash em uma empreitada que está além dos limites da ética, cada qual a sua maneira.

O poder da linguagem

A associação do filme de Field ao de Chazelle pode ser bastante natural àqueles que estão familiarizados com as duas obras. Os traços comuns compartilhados por elas saltam aos olhos, mas é impossível não notar o quanto, apesar disso, os filmes diferem-se um do outro.


As abordagens dos diretores são drasticamente distintas. Enquanto Whiplash se constrói em um ritmo acelerado, similar ao compasso da bateria soando freneticamente, e deixa o espectador quase impossibilitado de desviar o olhar da tela, Tár se mune de requinte.

A começar pela forma como as duas personagens emblemáticas são retratadas e construídas, Whiplash e Tár distinguem-se também dentro das semelhanças.

O maestro de Cate Blanchett consome a história com sua presença imponente, sendo retratada em toda sua complexidade. Dos momentos afetuosos e vulneráveis, como os que tem com a filha, às demonstrações de manipulação e insinuações de crimes, conhecemos a regente principal da Orquestra de Berlim até no papel de ridículo.


Todd Field explora o poder da sugestão e dá ao espectador a possibilidade de formular as próprias conclusões. Mesmo quando flerta com a comicidade, o humor em Tár pode passar despercebido no meio da atmosfera séria e fria que a obra imprime. É até comum que a existência puramente ficcional de Lydia Tár
cause certo espanto.

A protagonista do filme de 2022 tem uma relação com sua assistente que ultrapassa a esfera profissional. As expectativas de Francesca, então, são duplicadas: há o sonho, eventualmente frustrado, de ser regente e também a paixão por Tár, sendo casada com a violinista Sharon.

No ciclo das presas de Lydia, Francesca sucede Krista e antecede Olga. A primeira musicista teve a carreira boicotada pela personagem de Blanchett e a outra, recém-chegada, se torna seu novo alvo e começa a ocupar o lugar de Francesca. Depois que Krista comete suicídio as acusações e suspeitas em torno de Lydia formam o desenho do declínio de sua reputação. Isto é, pelo menos no Ocidente.
 

Field constrói tantas camadas e pistas soltas em sua narrativa que fica difícil encontrar o seu ponto de vista em relação à culpa de Tár provocando divergências de opiniões sobre a obra e sobre a personagem. Decerto, ambas têm a complexidade como característica.

De certa forma, a dinâmica de poder presente na história se repete na relação entre diretor e espectador. Dentro da narrativa, os personagens têm os rumores e as acusações a Lydia. Nós ficamos com as suspeitas e insinuações escolhidas por Field diferente do que ocorre em Whiplash.

No filme de Chazelle, o espectador é exposto aos jogos psicológicos, aos xingamentos e às agressões de Fletcher. Sua conduta abusiva é muito mais gráfica, o que tende a facilitar a formulação de uma opinião sobre o personagem. Ademais, diferente também de Lydia, o maestro é desenvolvido quase inteiramente dentro de seu ambiente profissional.

Ainda assim, é possível abrir a interpretações se o diretor afirma a tortura psicológica como uma forma de incentivo à grandiosidade, já que seu filme traça um paralelo com a história dos músicos Charlie Parker e Jo Jones.

Em Whiplash, Neiman está determinado a ser um dos maiores músicos da história, mas isso também passa pela aprovação de Terrence. Sua jornada obsessiva começa quando o professor o escolhe para sua turma. Em busca de agradá-lo, Andrew está disposto a dar sangue e suor
literalmente.


Depois de uma série de frustrações, ele desiste da bateria. Motivado pelas investigações do suicídio de um ex-aluno do maestro e com o incentivo do pai o protagonista denuncia Fletcher. O reencontro dos dois não acontece sem uma armadilha vingativa: um convite de aparente inocência que reacende o sonho de Neiman.

Na intensa e dramática apresentação da cena final, o protagonista se vê diante de um boicote público orquestrado pelo seu maestro. Mais uma vez humilhado, ele dá as costas e quase desiste novamente. Dessa vez, qualquer perspectiva de estabelecer a carreira de músico estaria destruída.

O próximo Charlie Parker, no entanto, jamais desistiria. Andrew tira Fletcher do eixo quando toma as rédeas da situação. A apresentação toma um novo rumo e a cena ganha outro fôlego. Nesse momento, Neiman enfrenta Fletcher e, ao mesmo tempo, o deixa orgulhoso.

 

Cena Final de "Whiplash" (Reprodução: Academy Award Clips/ Youtuber)


Na última troca de olhares entre os dois, Neiman sorri. Ele conseguiu o que tanto almejava: a aprovação de seu maestro estampada nos olhos. Assim como o Bird, o protagonista faz um solo que, possivelmente, o coloca lado a lado com os maiores músicos da história. A outra parte do conto, não tão explícita em Whiplash, é que Parker sofreu com a dependência química durante boa parte de sua breve vida.

Na metodologia de Fletcher há somente duas alternativas e nenhuma delas passa perto da definição de saudável: o suicídio ou o êxito. Segundo ele, seu papel é puxar os músicos ao limite para se tornar gigantes 
ou cedam, como o que aconteceu com todos os outros, já que Neiman é o primeiro Charlie Parker de Fletcher.

Whiplash é uma teia de obsessão que “vilaniza” um personagem e, ao mesmo tempo, pode fazer o seu ponto de vista parecer válido ou coerente. Em Tár, Lydia pode ser um crocodilo perverso ou uma artista que foi vítima de cancelamento.


Tudo isso faz parte das possibilidades de uma história, que são construídas a partir do ponto de vista do diretor e também do público, porque a magia de toda arte é a ressignificação. Irrefutável é somente o poder da linguagem cinematográfica de tratar dos mesmos temas sem soar repetitivo, alimentar a imaginação e provocar a mente com o dito e o não dito.

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