08/06/2023 às 16h39min - Atualizada em 04/06/2023 às 20h03min
"UnPrisioned" escancara um perfil familiar sub representado com o poder do humor
Surpreendentemente leve e divertida, "UnPrisioned" é a série de 2023, disponível na Star+, que representa os "daddy issues" de um jeito que você nunca viu. A menos que já tenha lido "I love you and I'm leaving you anyway".
Delroy Lindo e Kerry Washington em cena de 'UnPrisioned'. (Foto: Reprodução/ Variety)
Inspirada na vida de Tracy McMillan, a dramédia seriada Unprisioned – em português, Fora da Prisão – é um lançamento recente da Hulu que se utiliza da leveza cômica para tratar de temas sensíveis e urgentes como a ressocialização de ex-detentos.
A série conta a história de Paige (Kerry Washington), Edwin (Delroy Lindo) e Finn (Faly Rokotohavana) em oito episódios. Os três formam uma família nada tradicional e muito mais convencional do que a sociedade norte-americana gostaria de admitir.
Em entrevista ao SXSW Studio, Kerry Washington afirma que existem 80 milhões de pessoas com ficha criminal nos Estados Unidos. Por essa razão ela quis interpretar Paige e assinar a produção executiva da série criada por Tracy McMillan.
Edwin ganhava a vida através do tráfico de drogas e Paige, sua filha, lida com todas as consequências de ter como pai um detento que saía da prisão com promessas de mudança e, para decepção da filha, fechava o ciclo retornando ao cárcere privado.
Quando adulta, a protagonista, ironicamente ou não, torna-se psicóloga. Além de jogar luz em temas como ressocialização de ex-detentos, abandono parental, racismo e paternidade, a série ainda se preocupa em desconstruir o mito de que um profissional da saúde mental seja totalmente bem resolvido.
Trailer de 'Unprisioned'. (Vídeo: Reprodução/ YouTube - @hulu)
A dinâmica da psicóloga cuja vida é uma bagunça é um dos grandes trunfos da obra. Apesar de previsível, essa ideia contribui para a humanização de profissionais da área e, ainda, para a noção de que todos nós temos problemas na vida real.
Paige é tão comprometida com essa ideia que, além de psicóloga, ela é influencer digital e elabora todas as suas questões emocionais para o espectador – o fictício e, por tabela, o da série.
Além dessa ferramenta, a série se utiliza da quebra da quarta parede. A Little Paige, versão infantil da personagem de Kerry Washington, interpretada por Jordyn McIntosh, nos comunica diretamente as sensações e percepções da protagonista.
É pela perspectiva de Paige que acompanhamos a história de Fora da Prisão e conhecemos Edwin, um personagem muito importante na série. Embora conheçamos as marcas que as escolhas dele deixaram em Paige, é impossível resistir ao carisma que o personagem empresta de Delroy Lindo.
Finn, assim como nós, não fica imune aos encantos do avô jovial, esperto e descolado. O filho de Paige traz a percepção de uma geração mais nova à dinâmica da família. Finn acaba tendo um papel importante na mediação da relação entre a mãe e o avô.
Fora da Prisão começa com Edwin saindo da prisão depois de 17 anos. Mesmo com a relutância de Paige e com a relação complicada dos dois, ele passa a morar com a filha e com o neto adolescente que ainda não conhecia.
Daddy issues
Ao longo dos episódios, descobrimos que Paige viveu a infância passando por lares adotivos e que a sua criança interior, que se materializa na série como se fosse a manifestação da consciência da protagonista, não está curada. Seu comportamento enquanto adulta ainda reflete os traumas do abandono paterno.
Embora seja bem-sucedida em termos de carreira profissional, as consequências desses traumas são nítidos em sua vida amorosa. Paige tem dificuldade de aceitar que merece ser amada e respeitada.
Nesse sentido, a obra é bastante psicológica. As personagens são desenvolvidas a partir de suas experiências na infância, sobretudo no que concerne às relações familiares.
Os “daddy issues” de Paige e as consequências desses problemas paternos refletidos nas suas escolhas amorosas complicadas denotam até um pé na psicanálise, mas a protagonista de UnPrisioned nada mais é do que a Tracy McMillan da ficção.
Enquanto ela desconfia do pai e teme se decepcionar outra vez, ele por sua vez luta para não repetir os mesmos erros, esbarrando sempre na dificuldade de ser inserido no mercado de trabalho devido à condição de ex-encarcerado.
Além da violência policial que assistiu à mãe sofrer, a dificuldade de encontrar um trabalho digno é o que leva Edwin ao ciclo vicioso de sua vida. A responsabilidade pela saúde mental de Paige não é só de Edwin, mas do Estado que falhara com ela durante toda a infância e continua falhando com seu pai.
Quem não conhece o passado não entende o futuro
No sexto episódio, talvez o mais marcante dos oito, Edwin leva a família ao Alabama, onde passou a infância, para encontrar sua certidão de nascimento.
Nesse episódio cheio de simbolismos, Edwin rememora as dores e delícias de retornar às suas raízes, Finn entende sua negritude e Paige encontra a criança interior do pai, o que possibilita sua compreensão a respeito do homem que a ama e a deixou mesmo assim, como diz o título do livro autobiográfico de Tracy McMillan.
Mal (Marque Richardson) faz um contraponto à figura de Edwin. Ele é o assistente social do ex-presidiário e torna-se o interesse amoroso de Paige, apesar de ser o oposto do perfil de homens com os quais ela costuma se envolver.
Mal, assim como o pai de Paige, é negro e representa a "outra face" do homem negro; ele marca que este grupo é plural e diverso, dado necessário quando se trata de grupos sub representados da sociedade. Ao contrário de Edwin, o interesse amoroso de Paige é capaz de dar amor, atenção e respeito que ela não sabe como receber de um homem.
A relação dos dois sofre as consequências disso e, justamente por isso, é a voz de Mal que chama Edwin à responsabilidade paterna no último episódio. “Ela não sabe receber o amor de um homem bom”, diz ao pai de Paige, e em seguida o responsabiliza por isso. “Você a abandonou quando ela tinha três anos e continuou abandonando-a”. As palavras duras e verdadeiras de Mal são decisivas no futuro próximo de Edwin, o qual só saberemos se houver segunda temporada.
Assim como Tracy McMillan fala sobre a necessidade de aprender a amar-se em seu TED Talks, Paige compreende que precisa primeiro de um tempo para si na cena comovente em que ela acolhe Little Paige, dando-lhe a permissão para ser apenas uma criança. É quando fica claro por quê ela fala e se porta como o faz: é uma adulta no corpo de uma criança devido à pouca gentileza com a qual a vida lhe tratou até ali.
UnPrisioned é a jornada de cura interna e conjunta que, de maneira surpreendentemente leve, reflete os dramas reais de famílias que sofrem com o encarceramento de um. Tinha tudo para ser um This Is Us 2.0, mas é uma produção original do grupo Onyx Colletive, que impulsiona criações negras, e tornou-se a série mais assistida na plataforma Hulu com a habilidade de fazer temas difíceis parecerem simples de abordar.
Delroy Lindo e Kerry Washington em cena de 'UnPrisioned'. (Foto: Reprodução/ Variety)
