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22/11/2023 às 14h48min - Atualizada em 21/11/2023 às 19h08min

Do console às telonas: entenda como a comunidade gamer redefiniu as regras do jogo na cultura pop

O crescimento da comunidade de fãs de jogos eletrônicos vêm moldando a indústria do entretenimento, agora com um novo território a ser explorado: as adaptações cinematográficas.

Maria Eduarda Torres Cavalcanti - Revisado por Paola Pedro
(Foto: Reprodução / Top Movies)

Desde o surgimento dos primeiros fliperamas na década de 70, os jogos eletrônicos tiveram admiradores no mundo todo. Para uma geração que engatinhava aos sustos com Tubarão (1975) e que crescia com o embate épico entre a tripulação Nostromo e o extraterrestre de Ridley Scott em Alien, O Oitavo Passageiro (1979), aquela grande caixa de metal recheada de botões e luzes era como acessar um portal para outra dimensão, onde nada mais parecia importar a não ser a adrenalina que percorria todo o corpo a cada fase concluída. Era, literalmente, coisa de outro mundo. Com o avanço da tecnologia, os videogames, que antes eram vistos como uma espécie de “febre” da época, se tornaram uma indústria — e seu reinado no mundo do entretenimento continua sendo um dos mais lucrativos até os dias de hoje.

Em um tempo que a Nintendo e a Midway Games fizeram história na juventude de muitos com o encanador Mario e o campeão Liu Kang, rosto da franquia de Mortal Kombat (1992), a era das máquinas arcade deu lugar para a chegada do novo milênio e com ele, repaginadas foram mais que bem-vindas. Aos poucos, os games abandonaram os gabinetes motorizados e passaram a ocupar formatos cada vez menores até chegar aos consoles e dispositivos móveis que conhecemos atualmente. A chegada da internet permitiu que legiões de fãs de todas as partes do mundo pudessem se reunir — em salas de chat, partidas e transmissões on-line —  para cultuar os seus personagens favoritos e jogar junto. 

Os games, que antes eram tidos como uma subcultura, agora contavam com uma comunidade de fãs bem articulada e que passaram a integrar a cultura pop. A prova disso é que, mesmo aqueles que não viveram a época de ouro dos fliperamas ou que não entendem muito de videogame, já ouviram falar de Sonic, o porco espinho azul mais veloz da floresta de Green Hill. Ou, no caso dos jogadores mais assíduos, do herói destemido Link que luta contra criaturas malignas para salvar a princesa Zelda e o reino de Hyrule na saga de jogos The Legend of Zelda (1986), criada por Shigeru Miyamoto e Takashi Tezuka. 

A indústria dos jogos eletrônicos sempre teve grande influência, mas foi na pandemia da Covid-19 que o segmento deu um salto gigantesco de popularidade e se consagrou como um dos mercados que mais crescem no ramo do entretenimento. A nível de comparação: somente este ano de 2023, o mercado faturou 188 bilhões de dólares, ficando à frente do cinematográfico, com 77 bilhões — um saldo positivo graças à onda “Barbieheimmer”, mas que só constata a máxima deste texto: são os fãs e desenvolvedores de games que dão as cartas da vez. E, claro, a indústria do cinema — que atinge um certo esgotamento dos blockbusters de heróis — reconheceu, nas adaptações de jogos, um potencial lucrativo. Essa aposta não é nova, mas o sucesso do gênero é recente.

A maldição das adaptações de videogames
Era maio de 1993 quando o primeiro longa-metragem com atores reais baseado em videogame estreou nos cinemas, e os heróis virtuais escolhidos para saltar de um mundo para outro eram — ninguém mais, ninguém menos — que Mario e Luigi: a dupla de encanadores mais querida do mundo. Para Super Mario Bros (1993), as expectativas eram altas, mas o resultado foi uma interpretação infeliz da obra de Shigeru Miyamoto e Takashi Tezuka. 

O casal de diretores britânicos Rocky Norton e Annabel Jankel deixaram de lado o colorido Reino do Cogumelo para colocar os irmãos bigodudos numa Nova York futurista chamada Dihonatan: uma realidade alternativa em que os dinossauros escaparam da extinção e evoluíram, ao ponto de se tornarem parecidos com os humanos. A trama pra lá de esquisita e terrivelmente mal estruturada,ainda que leve um certo mérito pela coragem de dar a cara a tapa, é lembrado com muito amargor pelos fãs da velha guarda. Ali, se iniciou uma espécie de mitologia que assombra a comunidade gamer há décadas e que, até um tempo atrás, era tida como uma verdade inquestionável: a de que adaptações de jogos possuem a forte tendência de desagradar o público.  

A desconfiança dos fãs não é infundada: Street Fighter: A Última Batalha (1994) e Street Fighter: A lenda de Chun-li (2009), duologia inspirada na franquia famosa de games da Capcom e a filmografia do diretor alemão Uwe Boll — que inclui a adaptação de survival horror Alone In The Dark (2005), conhecida por figurar, invicta, com 1% de aprovação pela crítica, são alguns dos títulos que ajudaram a firmar a má reputação do gênero: todos eternizados em tela pelo visual cômico, roteiros de qualidade questionável e baixo orçamento.

Salvo raras exceções como o Mortal Kombat (1995), celebrado pelos fãs como uma das poucas adaptações fiéis ao jogos, e Terror em Silent Hill (2006), dirigido por Christophe Gans — recebido de braços abertos tanto pelo público quanto pela crítica, longa é a lista dos fracassos de Hollywood e maior ainda é o ceticismo dos amantes de videogames. Nem mesmo as superproduções “Hitman: Agente 47” (2015), “Warcraft” (2016) e “Tomb Raider” (2018), com elencos de peso, orçamentos multimilionários e efeitos especiais de qualidade, fugiram da recepção morna do público e do duro crivo da crítica. Adaptar histórias de videogame para o universo cinematográfico não é uma missão fácil de ser completada. 

Diferente das histórias em quadrinhos e dos best-sellers literários, que possuem uma estrutura narrativa semelhante a do Cinema, os recursos de jogabilidade presentes nos games, muitas vezes, não conseguem ser traduzidos de maneira eficiente para a linguagem cinematográfica. Afinal, uma parte importante da essência do jogo é perdida: a interatividade. Quando se trata de jogos arcade, os realizadores correm um risco ainda maior, pois ao priorizar esforços e investimento em performances e cenas de luta característicos do gênero, tendem a simplificar — por vezes, até demais — no enredo. Os longa-metragens de Street Fighter, por exemplo, não conseguiram superar esse destino. Derrota implacável para a dupla Ryu e Ken — que, inclusive, mal ganhou espaço nas telonas. 


Subindo de nível: The Last of Us
Não existe uma fórmula universal capaz de emplacar sucessos de bilheteria e garantir a aprovação do público. Em contrapartida, mapear os erros pode ser uma boa rota para evitar o fim de jogo. A falta de familiaridade do diretor com o material base, por exemplo, é um dos grandes problemas apontados em obras do gênero. Os realizadores partem de duas premissas diferentes, mas igualmente insustentáveis: enquanto uns tentam trazer uma interpretação literal dos games, desconsiderando as possibilidades no audiovisual — o que leva, em boa parte dos casos, a narrativas “seguras” e que nada enriquecem a obra —, outros apostam numa história original que utilizam características dos games mais como acessórios do que como material conceitual. 

É o caso do contraditório Paul W.S Anderson, que assinou a franquia mais famosa da Capcom, Resident Evil. Abrindo um parantêses para as execuções interessantes de Hóspede Maldito (2002) e Retribuição (2012), a jornada da ex-agente Alice (Mila Jovovich) contra o abuso de poder exercido pela Umbrella Corporation resultaram, de maneira geral, numa saga descaracterizada das suas referências originais, com subtramas que embaralham a linha temporal da história e personagens importantes que foram deixados de lado, mas podiam fazer contribuições valiosas no longa.

Apesar de ter arrecadado mais de um bilhão de dólares, a série de seis filmes protagonizados por Jovovich sofreu críticas fervorosas dos fãs. Ainda que o longa de estreia de Anderson aproximasse a trama pós-apocalíptica do suspense e seu quinto filme, Retribuição, tenha se apropriado de um ritmo narrativo semelhante aos games, o diretor entregou um conjunto de obra que em quase nada se assemelha a criação de Shinji Mikami, idealizador do jogo. 

Mas o que era preciso, então, para atingir as expectativas? Desafiando o destino cármico das adaptações de videogames, surge a nova produção da HBO Max: The Last of Us (2023). O seriado, que estreou em janeiro de 2023, leva para as telonas um dos jogos de maior sucesso da Playstation. A trama acompanha Joel (Pedro Pascal), numa terra pós-apocalíptica tomada pela mutação do fungo Cordyceps, que transforma os humanos em criaturas semelhantes a zumbis. Anos depois da perda de sua filha, Sarah, o sobrevivente solitário recebe a missão de escoltar Ellie (Bella Ramsey): uma das únicas pessoas imunes ao fungo. A partir daí, seguimos a jornada da dupla na esperança de encontrar uma cura.

Pedro Pascal e Bella Ramsey protagonizam Joel e Ellie em The Last of Us

Pedro Pascal e Bella Ramsey protagonizam Joel e Ellie em The Last of Us

(Foto: Divulgação / HBO Max)

Abraçado com entusiasmo pelo público e pela crítica, a aposta mais recente da gigante por trás de Game of Thrones não poderia ter dado mais certo: em menos de seis meses, The Last of Us conquistou o posto de série mais assistida na história da HBO Max, tanto na Europa quanto na América Latina. Com jogos de câmera inteligentes e um excelente trabalho de caracterização, a criação de Neil Druckmann e Craig Mazin surpreende ao se manter fiel à história original sem abrir mão de enriquecê-la na adaptação. Ao contrário da trama pós-apocalíptica de Racoon City, o seriado acrescenta subtramas e detalhes que elevam o material original: o passado da mãe de Ellie – que até então, não havia sido explorado nos jogos — e o capítulo dedicado a história de Bill e Frank são destaques positivos para a obra televisiva.

Em entrevista a Comic Book Resources (CBR) - site jornalístico especializado em HQs -, Craig Mazin, a mente por trás da série e fã declarado da franquia de jogos, revelou um dos motivos que assombraram as adaptações de games por muitos anos: “No passado, acho que muitas decisões sobre adaptações de videogames foram tomadas de forma muito cínica por pessoas que não jogavam os jogos”, explicou. O showrunner, que assinou a coprodução ao lado de seu ídolo, Neil Druckmann, apontou, ainda, um problema que persiste na indústria de Hollywood: as cifras milionárias vem antes do compromisso de uma adaptação de qualidade. "Eles apenas recebem um pedaço de papel que diz: 'Vendeu tantas cópias e tem tanta consciência global”, desabafou Mazin. 

The Last of Us mostra que é possível oferecer uma adaptação de jogos de bom calibre. Ao entregar performances realistas, cenas de luta bem coreografadas e, principalmente, um enredo coerente capaz de dar corpo aos avatares e cativar emocionalmente não só os aficionados como o público geral, o seriado cumpre com excelência a missão de aproximar duas linguagens tão distintas. Sem sombra de dúvidas, a nova aposta da HBO derrotou o chefão final — ponto para Mazin e Neil Druckmann. 

Arcane, a nova orbe da Riot

Arcane venceu o Emmy 2022 em quatro categorias, incluindo a de melhor animação

Arcane venceu o Emmy 2022 em quatro categorias, incluindo a de melhor animação

(Foto: Divulgação / Riot Games)

É válido ressaltar que, comparado aos filmes e séries — que ainda travam disputas para conquistar o público, as animações já estabeleceram uma base de fãs sólida dentro do gênero. A duologia de Sonic: The Hedgehog, lançada em 2019 e 2022, e Super Mario Bros (2023) encantaram o público com suas histórias coloridas regadas de lições de amizade e companherismo. Além disso, as duas franquias juntas arrecadaram mais de um bilhão de dólares. O sucesso, no entanto, não está restrito às sagas rivais da Nintendo. O universo de League of Legends, um dos maiores jogos multiplayer de combate do mundo, saltou dos pixels direto para as telonas em uma estreia inesquecível. 

Em Arcane (2021), produção assinada pela Netflix, somos levados para o meio de uma guerra tecnológica entre as cidades-gêmeas de Piltover e Zaun, onde as irmãs Vi e Jinx lutam em lados opostos do conflito. Num perfeito casamento entre a linguagem visual, que transmite o trabalho apaixonado dos animadores, e a narrativa, que aprofunda a lore do jogo — ou seja, as histórias dos personagens —  a série entrega para as nossas telas mais um produto de qualidade da Riot, mas sob uma roupagem completamente nova: a cinematográfica. O seriado caiu no gosto do público ao trazer uma história envolvente e concisa ao ponto de ser apreciada tanto pelos fãs quanto por aqueles que nunca tiveram contato com o game.  

Não é a primeira vez que a Riot, desenvolvedora por trás do videogame, expande os territórios da sua produção. Antes de se aventurar no seriado, os personagens de LoL povoaram a indústria fonográfica, com videoclipes musicais assinados por estrelas como a banda Imagine Dragons na faixa Enemy, que integra a trilha sonora da série. Arcane foi renovada para a segunda temporada e tem estreia prevista para novembro de 2024. 

Não há dúvidas que a indústria dos videogames se provou um segmento forte dentro da cultura pop, com uma legião de fãs ávida para ver seus personagens favoritos expandirem seus territórios para além do virtual. Resta saber se o setor cinematográfico vai honrar suas batalhas e firmar uma era tão promissora quanto a dos blockbusters de heróis e as adaptações literárias. As possibilidades estão à espera dos escolhidos.


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