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11/02/2024 às 00h26min - Atualizada em 10/02/2024 às 23h38min

Mais que Felizes para Sempre: a reinvenção das comédias românticas

As comédias românticas, que lentamente desapareceram das salas de cinema, têm testemunhado uma retomada interessante do gênero em um novo habitat, os streamings, e com vivências mais diversas

Maria Eduarda Torres Cavalcanti - Revisado por Paola Pedro
(Foto: Reprodução / Cine Set)

Anos Trinta, época de duros recomeços. Enquanto o mundo tentava retornar aos trilhos depois de atravessar os horrores da Primeira Guerra, uma forte crise econômica se alastrou por todo o globo e freou qualquer tentativa de progresso. A Bolsa de Valores de Nova Iorque — a maior das bússolas modernas do mundo financeiro — entrou em colapso e, com ela, vários bancos e empresas tiveram de fechar suas portas. O estilo de vida americano havia se tornado insustentável, afinal, não havia espaço para fantasiar sobre o futuro quando o presente se mostrava mais urgente. 

 

As evidências da aversão aos valores tradicionais estavam por todos os lados e, claro, o cinema não estava imune a esse efeito. Fugindo da animosidade dos anos vinte e indo contra as comédias clássicas, no qual as mulheres eram restritas aos papéis de bela donzela ou vilã desalmada, surgem as comédias malucas: gênero que investiu em protagonistas femininas mais independentes e em uma trama cujo romance é repleto de troca de farpas e diálogos espirituosos. No longa-metragem Aconteceu Naquela Noite (1934), o que temos, à primeira vista, não é o amor, e sim o desprezo mútuo. Nele, a filha de um milionário foge de casa para encontrar seu amado quando se depara com um jornalista desempregado, que promete não revelar seu paradeiro em troca de escrever uma matéria sobre sua ‘fuga de amor’. Durante a viagem, na obrigação de uma convivência regada à alfinetadas, a dupla vai se conhecendo melhor e — como esperado — se apaixona. 

 

A película dirigida por Frank Capra é a primeira a vencer as cinco principais categorias do Oscar: Melhor Filme, Melhor Atriz, Melhor Ator, Melhor Direção e Melhor Roteiro Adaptado. Esse feito só foi reproduzido mais duas vezes na história da premiação, com os thrillers O Estranho no Ninho (1975) e Silêncio dos Inocentes (2001). As comédias malucas, com seus pares envoltos em situações inusitadas, se transformariam, mais para frente, no gênero cinematográfico mais popular de todos os tempos: as comédias românticas

 

Quando era tempo de amar nas telonas 

 

Amantes ou não, é indiscutível: as histórias de amor sempre tiveram um forte apelo nas artes. Desde os primórdios da Literatura, com as tragicomédias shakespearianas e os clássicos de Jane Austen, à Sétima Arte — de onde nasceram estrelas como Audrey Hepburn (Bonequinha de Luxo) e Sandra Bullock (Enquanto Você Dormia) — as comédias românticas conquistaram admiradores no mundo todo. Com seus grandes gestos de amor, trilhas sonoras marcantes e declarações de tirar o fôlego, o gênero nos entregou performances que seguem eternizadas nas telas e na memória até hoje. 

 

Como falar de Julia Roberts sem evocar a deslumbrante Vivian, par romântico do milionário Edward Lewis (Richard Gere), desfilando pelo saguão do hotel num belíssimo vestido vermelho ao som de Pretty Woman, de Roy Orbison? Ou de Mel Gibson sem lembrar do publicitário arrogante e sexista que, após um acidente, adquire a habilidade de ouvir o pensamento das mulheres? As obras cinematográficas Uma Linda Mulher (1999) e Do que as Mulheres Gostam (2000) inauguraram a chamada era de ouro das comédias românticas: tempos em que as corridinhas minutos antes do beijo apaixonado eram sucessos de audiência. A prova disso é que os dois títulos citados correspondem, respectivamente, à quarta e a quinta maior bilheteria do ano em que foram lançados. 

 

Pouco a pouco, o gênero que arrancava suspiros do público se transformou na aposta segura de Hollywood. A chegada do novo milênio foi recebida de braços abertos por uma leva de produções carismáticas povoadas de mulheres sagazes, com carreiras profissionais consolidadas e altas doses — sem moderação, obrigada — de romance cosmopolita. Entre gargalhadas e suspiros, acompanhamos a astuta jornalista Andie (Kate Hudson) e o publicitário boa pinta Ben (Matthew McConaughey) em missões opostas: a dela, de perder um homem em dez dias e a dele, de conquistar uma mulher no mesmo prazo. É impossível não se encantar com a troca de farpas e as jogadas mirabolantes do casal determinado a não dar o braço a torcer ao som de You’re So Vain, canção de Carly Simon que Andie dedicou ao companheiro aos berros em uma das cenas mais memoráveis da trama. 

 

Em 2004, tivemos o nosso coração aquecido com os amigos de infância Jenna Rink (Jennifer Garner) e Matt Flamhaff (Mark Ruffalo). Em De Repente 30, dirigido por Gary Winnick, a protagonista está prestes a completar 13 anos quando faz um pedido: virar adulta. Milagrosamente, o pedido é atendido e no dia seguinte, Jenna acorda como uma mulher bem sucedida de trinta anos. O que ela não imaginava era que Matt, seu melhor amigo, não faria parte do seu futuro. A jornada de autoconhecimento da garotinha na “idade do sucesso” e a descoberta de seus sentimentos por Matt cativa do início ao fim, com seus momentos doces e suas reflexões sobre o que é crescer.

 

Quatro anos depois, Patrick Dempsey e Michelle Monaghan dão vida a Tom e Hannah, melhores amigos de personalidades e estilos de vida completamente opostos. No longa-metragem O Melhor Amigo da Noiva, temos o dilema clássico. Quando Tom descobre que realmente a ama, é tarde demais: ela está noiva e prestes a começar uma nova vida em outro país. Hannah o convida para participar do casamento e antes do grande dia, ele faz de tudo para conquistá-la. A trama, embora não seja a mais atrativa nos dias de hoje, ainda é revisitada por muitos pelas cenas divertidas de Tom se empenhando na missão de madrinha de casamento. 

 

Vale lembrar também do triângulo amoroso da solteirona e romântica convicta Bridget Jones (Renée Zellweger) entre o advogado carrancudo Mark Darcy (Colin Firth) e o mulherengo Daniel Clever, personagem interpretado pelo galã das romcoms, Hugh Grant. Lançado em 2001, O Diário de Bridget Jones fez tanto sucesso que rendeu mais duas sequências em 2004 e 2016 — na última, Patrick Dempsey assume o lugar do trio deixado por Grant. 

 

Nem Marte, nem Vênus: homens e mulheres são da Terra — e outros estereótipos no meio do caminho

 



Com o passar dos anos, no entanto, o gênero, que sempre fora tão popular, passou por um período de crise. Com a chegada de franquias como Harry Potter e Crepúsculo, esbanjando orçamentos milionários e efeitos especiais, era preciso mais do que singelas coincidências e um final feliz para reconquistar o público. Além disso, é preciso dizer que o tempo cobrou das comédias românticas um preço mais do que justo: a urgência de repensar a figura que protagoniza as histórias de amor, além de abandonar ideias e comportamentos considerados inapropriados.  

 

Um homem, que nunca superou um antigo amor de escola, decide procurá-la outra vez. Um consultor de relacionamentos ajuda um contador tímido a conquistar a mulher de seus sonhos. Soa romântico, não é? Permita-me reescrevê-las, enfatizando detalhes essenciais que a própria narrativa tenta despistar. A primeira descrição se refere ao longa-metragem Quem vai Ficar com Mary?, lançado em 1998 e protagonizado pela dupla Ben Stiller e Cameron Diaz. Na trama, para encontrar sua amada, Ted contrata um detetive particular para rastrear a sua antiga paixão. A atitude — no mínimo, questionável — é mostrada no filme de uma forma absurdamente romantizada, quase como se os roteiristas dessem carta branca à perseguição e à invasão da privacidade desde que sejam em nome do amor. Apesar de ser reprovado pela atitude, Ted, em momento algum, é responsabilizado por isso. Seu crime é amenizado pelo sentimento recíproco. 

 

O último é Hitch: O Conselheiro Amoroso, de 2005. Em uma das passagens do filme, o autointitulado “Médico do Amor”, protagonizado por Will Smith, dá o seguinte conselho: "Nenhuma mulher acorda dizendo: 'Deus, espero não ser surpreendida hoje'. Agora, ela pode dizer: 'Este é um momento muito ruim para mim' Ou algo como 'Só preciso de um pouco de espaço'. Ou meu favorito: 'Estou realmente interessado na minha carreira agora'. Você acredita? Nem ela. Você sabe porque? Porque ela está mentindo para você, é por isso. Você me entende? Mentindo. Não é um momento ruim para ela. Ela não precisa de nenhum espaço."

 

Ela diz que não está interessada, mas ele presume que ela está mentindo. Na equação do amor de Hitch, a insistência — mesmo que a troco do desconforto da parceira — é a chave da conquista. A mulher solteira, mesmo que esteja bem com isso, não é considerada plenamente realizada sem um par romântico. Ainda que seja bem sucedida no trabalho, tenha amigos de confiança e nutra um bom relacionamento com a família, a protagonista é mostrada sempre como se algo estivesse faltando e o pretendente, convenientemente, se revela na hora em que ela mais “precisava”.

 

Essa premissa não é exclusiva do longa-metragem de 2005: a idealização do amor capaz de superar qualquer adversidade e que transforma ideais e comportamentos erráticos em grandes atos de amor estiveram presentes – de forma explícita em certos casos e mais tímidas em outros — em boa parte das comédias românticas. Além disso, a imagem que estampava os cartazes promocionais das películas românticas costumava atender aos mesmos requisitos: protagonistas brancos, héteros e dentro de um padrão de beleza ocidental específico. Assim, para retornar aos circuitos comerciais, o gênero precisou renascer em uma nova proposta e com ela, surgiu também um novo olhar sobre os relacionamentos românticos.

 

O amor (ainda) está no ar

 

Nos últimos anos, a Netflix, considerada uma espécie de “padroeira” das romcoms, e os demais serviços de streaming resolveram apostar suas fichas no resgate do gênero, trazendo de volta às comédias românticas adolescentes com seus clichês açucarados, mas que levam certo mérito por trazer representatividade e questões que vão além da conquista romântica. Em Para Todos os Garotos Que Já Amei (2018), Lara Jean (Lana Condor), antes de ter o seu final feliz com o astro de futebol, Peter Kavinsky (Noah Centineo), precisa abandonar a idealização de amor perfeito — o retrato familiar da juventude à la Jane Austen e John Hughes que crescera consumindo romances de época — e superar seus medos: do abandono e do que virá depois do beijo apaixonado, grande desfecho das histórias que lera. Lara Jean, com seus modismos e dilemas, não deixa de ser uma heroína romântica contemporânea à Andie Walsh, protagonista da obra cinematográfica A Garota de Rosa Shocking (1986), em uma homenagem calorosa aos clássicos. 

 

No longa-metragem Com Amor, Simon (2018), adaptação cinematográfica da obra de Becky Albertalli, acompanhamos a descoberta do amor e da sexualidade do jovem Simon num feliz acerto para as comédias românticas adolescentes. Vivenciamos junto ao personagem de Nick Robinson seus dilemas e questionamentos — sobre si e sobre a forma como a sociedade em que vivemos é construída — ao passo que somos, surpreendentemente, acalentados por pais que buscam ouvir e acolher os filhos. Com Amor, Simon mostra que finais felizes são possíveis e que o amor homoafetivo, ainda que lute para existir em realidade, não precisa sempre enfrentar duras perdas na ficção para ser válido. 

 

Nem só de odes vivem o gênero: a retomada das comédias românticas vieram com o compromisso de televisionar a diversidade e explorar o relacionamento amoroso fora do convencional estilo de vida americano. Abraçar, numa mesma trama, a ancestralidade e os valores das novas gerações exige do diretor muita sensibilidade e inventividade para não cair na armadilha da representação caricata. O realizador Jon M. Chu, a mente por trás do longa-metragem Podres de Ricos (2018), foi bem sucedido ao entregar uma sátira bem humorada do cotidiano de uma família excêntrica de magnatas. Na trama, Nick Young (Henry Golding) convida sua namorada, Rachel Chu (Constance  Wu) para ir ao casamento de seu melhor amigo. O que Rachel não sabe é que seu namorado aparentemente humilde — e que rouba colheradas de sua sobremesa — é herdeiro de uma das famílias mais prestigiadas de Singapura. 

 

Em pouco tempo, a professora universitária se vê na mira de Eleanor (Michelle Yeoh), mãe de Nick, e seu relacionamento precisará sobreviver às provações da família Young. Com elenco de origem asiática, o diretor oferece mais que uma comédia romântica carismática. Podres de Ricos mostra o choque de estruturas familiares e valores culturalmente diferentes e como seus personagens são afetados por elas. Enquanto Rachel foi criada em um país estrangeiro e pôde conquistar, com muito sacrifício, sua realização profissional, Eleanor precisou abdicar dos sonhos para se tornar a matriarca exemplar da família. Essa dualidade, ainda que sirva como combustível para o confronto, encontra uma trégua no final, com o amor de Rachel e Nick triunfante e uma mãe que escolhe — pela primeira vez — um destino que não lhe é imposto: o de ir contra a tradição chinesa de culpar os filhos por trilhar seu próprio caminho. 

 

A maioria das histórias de amor nascem de belos encontros, mas a de Lucy (Geraldine Viswanathan) e Nick (Dacre Montgomery) foge ligeiramente dessa regra. Em Galeria dos Corações Partidos (2020), dirigido por Natalie Krinsky, o par se conhece a partir de um inusitado desencontro: Lucy, uma colecionadora e romântica nata, sofre um término de relacionamento que compromete seu emprego numa renomada galeria de arte de Nova York. Sem saber o que fazer com os objetos que seu ex-namorado deixou pra trás, ela organiza a “galeria dos corações partidos" no saguão de um hotel em construção, gerenciado por Nick. A obra que parece, à primeira vista, ser uma comédia romântica despretensiosa, se revela uma bela e dolorida história sobre vulnerabilidade e seguir em frente. 

 

O longa, além de se apropriar de forma inteligente de certos clichês do gênero, nos faz refletir sobre as coisas que guardamos, as que deixamos para trás e outras tantas que escolhemos continuar carregando. Krinsky nos entrega a magia presente nas comédias românticas, com seus momentos doces, mas que se afasta da idealização clássica: com personagens sem imperfeições aparentes e a promessa de um amor “eterno”, que dispensa esforços após a conquista. 

 

O renascimento das comédias românticas — fiéis ao imaginário e aos dilemas de cada época — vem acompanhado, sobretudo, de uma responsabilidade tanto na construção de um protagonismo mais diverso, que abrace todas as formas de ser e de se relacionar, quanto na preocupação em respeitar os limites do consentimento e colocar mulheres e minorias não só a frente, como por trás das câmeras. O felizes para sempre, com todos os floreios e idealizações, deixou de ser uma promessa. O amor romântico a qual historicamente, era relegado às mulheres como destino, passa a ser uma escolha pois como disse Jo March, em uma das passagens mais emblemáticas de Adoráveis Mulheres

 

“Mulheres têm mentes e têm almas, além de só corações. Elas têm ambições e talentos, além de beleza. Eu estou tão cansada de pessoas dizendo que amor é a única coisa para a qual a mulher serve.”

 

Ainda que o futuro das comédias românticas seja incerto e permeado por certos deslizes, não é mais aceitável que Jack Black só possa se sentir atraído por uma mulher gorda se for enfeitiçado e enxergá-la como a loira esbelta Gwyneth Paltrow. Nem mesmo histórias como a de Nunca Fui Beijada (1999), em que o romance é centrado na relação entre um professor de ensino médio e uma de suas alunas, ainda este seja um disfarce de uma jornalista de vinte cinco anos. As comédias românticas seguem vivas, mesmo com uma produção tímida se comparada aos seus anos áureos, pois são, sobretudo, histórias de pessoas comuns sobre vulnerabilidades — do outro e de si próprio, celebrando o amor: a maior e mais bela das linguagens universais. 

 

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