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12/02/2021 às 10h13min - Atualizada em 12/02/2021 às 10h10min

“Homens pretos (não) choram”: a masculinidade negra em perspectiva

"Como você enxerga o homem negro? O que é isto que ainda carregamos como herança dos tempos tão sombrios? Paradigmas. Estereótipos. O pai preto violento e ausente. O neguinho. O negão. Homem preto emasculado e hipersexualizado. Como quebrá-los?"

Karoline Miranda - Editado por Gustavo Henrique Araújo
Foto: Reprodução/Amazon

Um homem idoso que não chora. Um poeta de rua que não abre mão de sua alma. Um policial cheio de traumas de infância. Esses são alguns motes que a obra “Homens pretos (não) choram”, de Stefano Volp, evoca. O livro de crônicas, lançado em dezembro de 2020 a partir de um financiamento coletivo, mostra um pouco das várias faces da masculinidade negra — e do quanto ela ainda é problemática quando unimos o sexismo, a imposição de estereótipos machistas e a presença do racismo na cultura brasileira. 

 

Não seria exagero comentar que o livro é um sucesso. Com menos de dois meses de lançamento, os números crescem à vista: a obra já acumula 93 leitores no Goodreads e 371 no Skoob, as principais redes sociais de leitores do Brasil. A avaliação geral dos leitores não é menor do que 4.7 de 5 estrelas. A repercussão positiva, segundo as inúmeras resenhas das redes sociais, tem a ver com como as crônicas tocam o leitor de forma tão íntima, principalmente se esse leitor for um homem negro. É o caso de Sérgio Motta, escritor e um dos criadores do Resistência Afroliterária, principal portal de promoção e divulgação de leituras negras no Brasil, que escreveu a introdução do livro de Volp. 

 

Sérgio conta que o convite para escrever a introdução não era esperado, mas “tinha que ser”. Os três - Volp, Sérgio e a esposa, Lorrane - começaram a amizade em 2020, mas ela logo foi crescendo e virou uma parceria para a vida. “O convite veio como uma grata surpresa. O Volp já conhecia meus textos do Afroliterária e do artigo que escrevi também para o Clube da caixa preta, outro projeto dele, sobre nosso direito de sonhar. Então, ele me pediu para escrever sobre uma experiência pessoal em torno da minha vivência enquanto homem negro. Fiquei honrado com o convite e percebi que era hora de escrever sobre meu pai e a figura representativa que ele era”, conta o escritor. “Quando o Volp leu, tivemos uma conversa linda, em que ele disse que não teria como imaginar outro texto para abrir o livro.”

 

Introdução e crônicas, de forma íntima, quase palpável, invadem os sentimentos do leitor de diversas formas e fazem pensar o quanto o homem negro é quase sempre hipersexualizado, criminalizado, marginalizado, invisibilizado, mas dificilmente humanizado. Sérgio percebe isso a partir de leituras - dos escritos e da vida - que faz a partir da observação de outros homens negros, e as crônicas de Stefano Volp transmitem justamente esse lado que falta.

“Penso que todo e qualquer obra que humaniza o homem negro, mostra defeitos e qualidades, erros e acertos, sentimentos, história, sorrisos, causa um impacto positivo. A maior referência estética e cultural que temos dessa desmistificação do homem negro é a obra do Racionais, sobretudo a partir de 'Sobrevivendo no inferno'. Histórias, narrativas plurais dentro de cada música compondo um álbum com uma estrutura completa. Sinto que 'Homens pretos (não) choram’ traz uma proposta semelhante, mostrando outras vivências, de outros tempos, mais intimistas."

 

Essa releitura está sendo cada vez mais colocada nos dias atuais. Influencers negros, como Caio César, Roger Cipó, Levi Kaique e artistas como Emicida tem cada vez mais impactado na discussão das masculinidades negras e do questionamento de como são impostas. “Homens pretos (não) choram” ajuda a ampliar ainda mais esse debate não só nas redes, mas também para dentro da literatura. Embora Sérgio acredite que o debate sobre o homem negro na sociedade está avançando, ainda o considera bem longe do ideal.

“Faz nem quatro anos que comecei a ouvir falar de discussões acerca de masculinidades negras. Ainda é fresco e pouco difundido e anos-luz atrás do corpo de discussão que, por exemplo, o mulherismo africano tem. E não só nas discussões estruturalmente academicistas e filosóficas, mas nas famílias negras das comunidades, sempre vimos mais a mulher negra, a mãe preta, a filha, ter um senso de união, respeito, sobrevivência e triunfo da comunidade negra do que os homens negros”, conta o escritor paulista, que cita como suas referências a aclamada escritora Conceição Evaristo e seu livro de contos “Olhos d’água”, sucesso de crítica que revê, em contrapartida, as diversas feminilidades negras. 

 

No entanto, debater isso continua sendo cada vez mais importante em um país em que jovens negros tem 2,7 mais chances de serem assassinados do que brancos. A construção de narrativas acerca do tema é fundamental, como enfatiza Sérgio. “Termos essas discussões hoje é essencial e positivo. Principalmente para que os homens negros possam refletir nesse lugar complicado e dúbio que ele representa, entre ser homem e negro, entre o privilégio e o trauma. O fato de hoje já não se discutir mais masculinidade negra, mas masculinidades negras, no plural, é um avanço. O fato de chamarmos os espaços para isso de diálogos, também. O homem negro nunca pôde errar, dialogar, pensar, repensar, se pensar, ser diferente, sonhar. Afinal, era um bicho. Hoje, homem negro é homem e negro."

 

A permissão da humanidade, tão debatida em “Homens pretos (não) choram”, é o que mais torna o livro impactante. “Nos compreendemos como homens de forma muito mais profunda do que aqueles que nunca nos consideraram como homens, mas animais; os homens brancos. Esses diálogos são caminhos que vem nos permitindo reinvidicar nossa humanidade. O livro ‘Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidade’ foi um grande marco disso dentro da literatura acadêmica; ‘Homens pretos (não) choram’ também é, na literatura ficcional, e será referenciado na nossa compreensão”, comenta Sérgio.

 

Sou mãe de um menino negro. E ao ler o livro de Stefano Volp, tudo o que mais quis foi que meu filho pudesse dialogar com todos aqueles homens e se entender como humano no futuro. Não mais uma estatística. Não mais procurado pelas garotas por ser “o pretinho”, “o negão” ou “o pegador”. Que ele se permitisse chorar, crescer, viver, ser pai (ou não), ser hetero ou bi ou homo, mas que se permitisse ser vivo. Em que ele permanecesse em vida como homem negro, e não mais em sobrevida. 

 

Que ele soubesse que homens pretos choram, sim. Inclusive ele.


Sobre Sérgio Motta: é um escritor nascido e criado na periferia de São Paulo. A cidade, repleta de fantasia, caos, diversão e diversidades, é sua musa. Publicou "Spider" na chamada especial para o Brasil da Strange Horizons, com tradução na Trasgo, "Ciberbochico" pela Revista Mafagafo e a novela "Aline na Avenida das Paulistas". Escreve sobre arte, literatura, cultura e afrocentricidade — e a confluência de tudo isso — em suas histórias e no site Resistência Afroliterária.

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