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14/03/2021 às 20h53min - Atualizada em 14/03/2021 às 20h14min

Muitos dias de luta, poucos dias de glória

Lembrar das conquistas e não se esquecer do esforço diário da mulher para que sua voz seja ouvida e respeitada

Marina Miano Cardoso - Editado por Maria Paula Ramos
Coletivo Mulheres pela Vida protesto pelas mortes por decorrência de Covid-19, em São Paulo. Crédito: Bruno Santos / Folhapress

O impacto da pandemia de Covid-19 não afetou a todos da mesma maneira, as mulheres, principalmente as que são mães, deparam-se com o aumento de suas cargas de trabalho ao acumular os cuidados com os filhos, as tarefas domésticas e a profissão. Isso, somado ao atual governo que prega o conversadorismo com a tradicional família brasileira heterossexual, a religiosidade e patriotismo exagerados com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, e as conduções de políticas públicas, principalmente as relacionadas à diversidade sexual e de genêro, reprodutividade, e saúde afetivo-sexual, faz com que haja um retrocesso nos frágeis avaços da luta das mulheres pelos seus direitos. 

 

 A data comemorativa do Dia Internacional da Mulher nasceu no século 20 após um incêndio em uma fábrica têxtil que matou 125 mulheres e foi marcada por uma série de manifestações por melhores condições de trabalho.  Até hoje serve como reflexão a respeito do longo caminho percorrido pela luta por igualdade entre os gêneros. De lá para cá, muitas batalhas foram conquistadas, algumas delas: o direito de acesso as faculdades (1879); a conquista do voto feminino no Brasil em 1932; a criação da pílula anticoncepcional (1961); a sanção do Estatuto da Mulher Casada (1962), que deu o direito de trabalhar fora de casa, requerer a guarda dos filhos em caso de separação e direito à herança; a Lei do Divórcio em 1977; a criação do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher em 1987; a Constituição de 1988 passa a reconhecer as mulheres como iguais aos homens; 2006 é sancionada a Lei Maria da Penha para combater a violência contra as mulheres; a Lei do Feminicídio é aprovada em 2015; e a importunação sexual é considerada crime em 2018

 

São passos importantes, mas não o suficiente.

“A nossa luta ainda consiste em sermos escutadas, não sermos subestimadas, acreditar no nosso potencial de contribuir para a sociedade” ressalta a psicóloga Rayanne Duart. “As mulheres ainda precisam alcançar muitas coisas. Aquilo que está na Lei, no abstrato, não vemos na vida real, no concreto. Socialmente estamos retrocedendo.” afirma Caronila Bernardini Antoniazzi, formada em Direito e Filosofia,  mestrando em Filosofia pela FFLCH USP. 

 

Ser mulher é enfrentar desafios diferentes todos os dias 

 

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) as mulheres representam 51,8% da população brasileira, mesmo assim ainda enfrentam muitos cenários desiguais encarando jornadas triplas: saem para trabalhar, cuidam da casa, dos filhos e dos maridos. “Isso só piora no caso das mães solos, que ainda são 'mal vistas' por uma parcela da sociedade, infelizmente”, explica Carolina Bernardini. Em 2018, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), os domicílios brasileiros que eram comandados por mulheres representavam 45%. 

 

As mulheres que trabalhavam ou buscavam emprego no segundo trimestre de 2020 representavam 45,8%, segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). 



 

“Mesmo algumas mulheres que trabalham ainda são um pouco dependentes financeiramente de seus maridos. Os homens, em sua maioria, ainda ocupam mais o mercado de trabalho, os cargos de liderança. E quando há um homem e uma mulher ocupando o mesmo cargo, exercendo as mesmas tarefas, o salário dele é maior que o dela” explica a mestranda em Filosofia pela FFLCH. 

 

“Quando falamos do mercado de trabalho, algo importante de se lembrar é o recorte racial. Devemos nos questionar quem são as mulheres que ocupam o mercado de trabalho. Isso é refletido pela educação, quem são as mulheres que estão nas universidades, nas grandes faculdades, no mestrado, doutorado. Ter uma mulher branca em um cargo alto é importante, mas não é o suficiente” expõe Carolina. 

 

Mesmo com o crescimento do debate a respeito das questões raciais, os negros, principalmente as mulheres negras, ainda enfrentam problemas para se colocar no mercado de trabalho. De acordo com uma pesquisa realizada em 2020 pela empresa Box1824 e a consultoria Indique Uma Preta que ouviu cerca de mil mulheres negras na faixa etária de 18 a 65 anos, apenas 8% delas ocupavam cargos de liderança, 54% tinham trabalho remunerado e 39% estavam em busca de emprego. 

 

“Isso vem da nossa história escravocrata e os reflexos dela na nossa estrutura, que ainda reproduz o sistema colonial, com o seu olhar para os cidadãos negros como alguém que está ali para servir. Isso se retrata na ocupação de negras como faxineiras e empregadas domésticas. Quando nos esforçamos para entrar e ocupar outros espaços se torna uma luta solitária, difícil e desigual. Se pararmos para pensar em um todo, bem desenhado, basta observar onde está a maioria da população negra, sua renda e escolaridade. Existe um vácuo para que essa população consiga chegar em grandes cargos” explica a psicóloga Rayanne.

 

Meu corpo. Minhas regras? 

 

Se voltarmos um pouco à história da humanidade, a mulher não era vista como um indivíduo autônomo e, sim, como um objeto para reprodução e moeda de troca nos casamentos. Não tinha direito sobre seus filhos, o seu lar e, principalmente, o seu corpo. Suas roupas eram padronizadas e desconfortáveis. 

 

Com o ato simbólico da queima de sutiãs, saltos altos, cílios postiços, laquê para o cabelo, espartilhos e cintas, as mulheres assumiram a sua sexualidade e escolha de suas vestimentas. 

 

Porém a dualidade de que a mulher tem que ser sexy para o seu marido e ao mesmo tempo ser a “bela, recatada e do lar” se mantém presentes. A que usa roupa curta é objetificada pelo homem, feita para consumo, e aquela que se veste de maneira “adequada” é para casar e construir uma família. 

 

Quando pensamos na diferença de visão entre o corpo da mulher branca e da negra isso fica ainda pior. “Nosso corpo é visto como algo para uso, exploração na linha sexual, de não intelectualidade. Na minha perspectiva, uma mulher negra algumas vezes não é vista nem como mulher”, relata Rayanne Duart.  

 

“Ainda não temos controle 100% de nossos corpos. Quando usamos o termo “abaixo ao patriarcado" queremos dissociar a mulher do modo como ela é vista, como um objeto, alguém que tem de construir uma família, ser dependente de um homem, cuidar da casa, ter filhos. A nossa luta principal tem de ser o direito ao aborto, uma barreira que ainda não conseguimos ultrapassar. Assim como Silvia Federici, também acredito que a reprodução é um trabalho não remunerado” aponta Carolina Bernardini Antoniazzi

 

A criminalização do aborto não impede que seja realizado, todas as mulheres fazem: mães, casadas, solteiras, ricas, pobres, religiosas ou não. Segundo o Ministério da Saúde a cada dois dias uma mulher brasileira morre vítima de aborto clandestino. 

 

Como esse tipo de prática é considerada crime, os dados a respeito são incompletos, permitindo apenas estimativas de acordo com o Sistema Único de Sáude (SUS), a partir disso os especialistas fazerem um alerta: no nosso país as mulheres que mais morrem em decorrência de interromper uma gestação são as negras, pardas, pobres e de menor escolaridade. “A fala de ‘engravidou porque quis’ é dita para todas as mulheres, independente de sua cor. Mas o olhar para a negra é diferente, como nossos corpos são vistos para uso, a gestação e interrupção dela é mais julgada”, explica Rayanne. 

 

Dificuldades dentro do movimento feminista

 

O movimento feminista, históricamente, tem a dificuldade de transformar em uma só voz pautas de diferentes grupos oprimidos e minonitários. Ao pensarem em suas próprias vivências de acordo com suas divisões de classes, acaba por surgir uma lacuna entre o individual e o coletivo, que impede o avanço do movimento como um todo. “Quando pensamos no movimento feminista devemos pensar também de que mulheres estamos falando. Simone de Beauvoir se questionava do porquê as mulheres não conseguiam se unir. Essa dificuldade molda o movimento feminista”, esclarece a mestranda em Filosofia, Carolina Bernardini

 

“Tenho essa dificuldade de dialogar, não sinto que as outras vertentes conseguem vender a pauta racial. Quando falamos de emancipação das mulheres, devemos tratar de todas as mulheres. Por se discutir a respeito das minorias, deveria ser uma luta de todos: classe, gêneros, LGBTQI+ etc, não faz sentido ter essa divisão dentro do movimento”, finaliza Rayanne Duart.



REFERÊNCIAS: 
Álvarez, Pilar. El País. 07 de mar. 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/eps/2021-03-07/o-desafio-de-ser-mulher-em-tempos-de-pandemia.html> Acesso em: 12 de fev. 2021. 
AGUIAR, Ana Graziela. Agência Brasil. 08 de mar. 2021. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2021-02/mulheres-tem-conquistas-mas-caminho-ainda-e-longo-para-igualdade> Acesso em: 12 de fev. 2021.
BRIGATTI, Fernanda. Pandemia deixa mais da metade das mulheres fora do mercado de trabalho. Folha de S.Paulo. 1° de fev. 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/02/pandemia-deixa-mais-da-metade-das-mulheres-fora-do-mercado-de-trabalho.shtml > Acesso em: 13 de fev. 2021. 
DIAS, Nicole. 10 coisas que as mulheres conquistaram e você não sabia. Dicas de Mulher. 08 de mar. 2021. Disponível em: <https://www.dicasdemulher.com.br/conquistas-femininas/> Acesso em: 13 de fev. 2021. 
PINHEIRO, Tata. Nova Escola. 1° de mar. 2019. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/16047/as-principais-conquistas-das-mulheres-na-historia> Acesso em: 13 de fev. 2021.
SERRA, Amanda. Aborto e Religião. Uol Universa. 2 de agost. 2018. Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/especiais/aborto-x-religiao/#leia-mais> Acesso em: 13 de fev. 2021. 

https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1693670964086992-manifestacoes-do-dia-internacional-da-mulher
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