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14/08/2021 às 08h59min - Atualizada em 14/08/2021 às 08h55min

Crônica: ler pode ser um problema?

A partir de que ponto a leitura deixa de ser algo bom para se tornar compulsiva?

Ana Paula Alves - Editado por Larissa Bispo

Eu tenho 12 anos. Meus pais começaram a brigar por algo que não sei o que é. Não entendo o que eles falam, as palavras são confusas e o timbre furioso as torna ainda mais incompreensíveis. Eu estou com medo, eu não entendo, a raiva deles me assusta. Então fujo para o meu quarto, o mais longe possível dos gritos, e tento abafá-los com o livro que eu estava lendo. É uma história fantasiosa, com pré-adolescentes mergulhando em aventuras e enfrentando corajosamente monstros e vilões. Eu entro nela e todo o resto do mundo desaparece, não existem mais brigas, não existem mais gritos, apenas personagens em suas histórias empolgantes e divertidas. Eu me escondo naquele mundo, feliz e com uma grande tranquilidade, até tudo passar.

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Eu tenho 16 anos. Minha namorada acabou de terminar comigo. “As coisas esfriaram”, ela disse, ou seja, ela enjoou de mim. Me sinto um lixo, fui jogado fora de uma hora para a outra. Chorei enquanto tomava banho, abafando os meus soluços com o barulho do chuveiro. Não conseguia parar de pensar nela, nem em como ela estava quando disse aquilo para mim. O rosto perfeito, os lábios rosados, que afirmavam o quanto não me suportava mais. Quando consegui parar de chorar, peguei um livro para me distrair. É uma distopia fantástica em que os protagonistas têm poderes especiais, que vão ser bem úteis na sua luta contra o governo opressor em que vivem. Eu leio até que tudo que existe na minha mente seja esse mundo destruído e cheio de opressão, que espero ansiosamente que seja melhorado pelos protagonistas. Até que não me lembre mais do rosto perfeito e suas palavras cruéis e eu esteja totalmente entretido naquele universo.

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Eu tenho 26 anos. É meu segundo ano morando sozinho em meio a uma pandemia. Eu já evito ver jornais, eles me deixam deprimido e inconformado com toda a situação do país. Minhas leituras também mudaram, tenho evitado livros com temas muito “pesados”, que piorem meu estado mental já debilitado. Agora, apenas leio romances e fantasias com finais felizes. Sempre que fico triste ou desanimado, mergulho em um novo mundo fantástico e me permito ficar nele por algum tempo. É algo bom, me acalma e me permite um pouco de paz e felicidade nesse período caótico e desesperador. Me perder um pouco nesses universos me ajuda a lidar com tudo que vem acontecendo, me ajuda a desligar, por um momento, da preocupação e ansiedade que a pandemia gera em mim. É algo que faço pela minha própria sanidade.

Mas agora não tenho mais tanta certeza disso.

De repente me vi em um espaço completamente caótico, desorganizado. Uma pilha de roupas que já deveria ter lavado, uma mesa de trabalho repleta de tralhas inúteis, uma camada de poeira pela casa que eu deveria ter aspirado semana passada.

Também percebi que estava cada vez mais difícil cumprir os prazos do trabalho, manter minha caixa de e-mails organizada. Quase perdi uma reunião importante porque não respondi um e-mail. E vi minhas tarefas se acumularem até formarem uma bola de neve que quase me esmagou. 

Notei que meus horários de dormir e acordar estão cada vez mais inconstantes, simplesmente não consigo criar uma rotina de sono.

E diante de tudo isso, eu começo a ler uma nova saga de fantasia medieval, em que o personagem principal encarna totalmente a jornada do herói. Isso me acalma e me tranquiliza por um período, a imersão naquela narrativa me diverte e relaxa, quero saber mais desse mundo e desse herói. Mas quando paro de ler, meus problemas continuam ali, parecem até piorar, a casa tem cada vez mais poeira e eu acumulo ainda mais tarefas.

Quando tento me lembrar sobre o que eu estava fazendo durante todo esse tempo para não ter conseguido cumprir nenhuma das minhas obrigações básicas para sobrevivência, minha mente é iluminada pela percepção. Ali estava eu, fugindo delas e da realidade assustadora com uma nova saga de livros. Eu estava lendo ao invés de realizá-las.


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