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24/02/2022 às 23h36min - Atualizada em 24/02/2022 às 23h34min

Conte-me tudo, não esconda nada!

Na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza

Rafael Dias - Editado por Larissa Bispo
Fonte: Google Imagens/Cena do episódio "Doug perde o Diário", lançado pelo canal Nickelodeon em 1991
Um amigo e companheiro de primeira classe
 

Ele tem vários tamanhos e cores. Não fala, mas é bom ouvinte. Longe de ser moralizador, prefere não julgar. Pelo contrário.

Evita dar conselhos, mas está sempre ali, pronto para relembrar o que lhe foi contado e provocar pensamentos e reflexões em quem com ele passou algum tempo. Não é padre, mas costuma deixar à vontade para receber confissões.

É confiável, mas exige algo em troca: ser tratado com um mínimo de cuidado e ser mantido longe de más companhias para não ser forçado a revelar a quem não deve os segredos que guarda.

Em qualquer situação, pode-se a ele recorrer. Na saúde ou na doença, na alegria ou na tristeza, na riqueza ou na pobreza.

A descrição acima não se refere bem a quem, mas a o quê. A um objeto, em formato de caderno. Seu nome é diário.

Quem decide nele escrever tem uma necessidade essencial: isolar-se consigo e registrar como foi o dia que passou. Assim, derrotas, vitórias, traumas, aprendizados, amizades ou amores que vão ou que vem, sentimentos, ideias ou quaisquer outros tipos de momento podem ser anotados.

O juízo de valor cabe ao dono, sem preconceitos, amarras, limites ou necessidades de aceitação por parte de terceiros. O que vale é o que é considerado importante no momento da escrita. Apenas isso.

Se um episódio do dia é ali posto, é porque de algum modo teve relevância para tanto. Se há erros de escrita ou rasuras, se é colorido de mais ou de menos, pouco importa. A necessidade ali presente é a introspecção. O hábito, em si, pode ser adotado em qualquer tempo – e por qualquer pessoa. De meninas a meninos, de jovens a idosos, de anônimos a famosos. Daí o valor do companheiro chamado diário.
 

A importância da privacidade

Considerando o caráter privado do diário, é fácil perceber como ele merece cuidados, sobretudo no que se refere a sua guarda. Logicamente, quem o escreve considera o que é contado como algo particular, justamente querendo evitar situações constrangedoras, como o julgamento de terceiros diante da exposição indevida de pensamentos íntimos.

Situações assim não são difíceis de imaginar e já foram várias vezes retratadas em roteiros de séries de televisão, em peças de teatro, na literatura ou em outras mídias.

Doug, o garoto protagonista da série de animação criada em 1991 por Jim Jinkins e exibida originalmente pelo canal Nickelodeon, por exemplo, teve momentos de infortúnio por perder um diário.

No episódio da primeira temporada, “Doug perde o Diário”, o personagem não encontra o caderno quando vai escrever. Depois de revirar a casa junto com o cão de estimação Costelinha, decidi refazer os passos do dia anterior na companhia do amigo Skeeter e vai, pouco a pouco, entrando em pânico ao imaginar o constrangimento que pode passar caso os colegas encontrem o diário e descubram seus segredos, dentre eles a paixão secreta que sente pela colega Patti Maionese.

Embora o desfecho da história seja favorável a Doug, é fácil para o público se identificar com o nervosismo do menino à medida que a história avança e sua privacidade é posta em jogo.
 
Quando o diário inspira algo mais

Embora o conceito mais lógico de escrever um diário seja manter privadas suas anotações, às vezes o autor segue caminho diferente e decide tornar público relatos que, a partir de suas experiências pessoais, podem influenciar outras vidas e, até mesmo, a própria sociedade.

Anne Frank é, de longe, o exemplo mais notório. Nascida em 12 de junho de 1929, alemã e judia, a garota se viu obrigada a mudar com a família para Amsterdã, na Holanda, após a ascensão do nazismo ao poder, em 1933. No entanto, mesmo a mudança de país não foi o suficiente para garantir a segurança de todos.

Em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os países baixos foram invadidos pelos nazistas e a perseguição a judeus se intensificou. Por isso, em julho de 1942, a família de Anne decidiu se refugiar em um sótão do prédio em que seu pai, Otto, trabalhava. Além de seus pais e da irmã Margot, a garota conviveu com outras quatro pessoas, também judias, que ali se abrigaram: o dentista Fritz Pfeffer e a família Van Pels.

O sótão consistia em um anexo secreto da construção e, por isso, Otto recorreu a ele. Por questão de segurança, todos ali precisavam fazer o mínimo de barulho para evitarem ser descobertos.

Nesta época, Anne já contava com a companhia de um certo caderno: um diário, cuja capa era formada por um pano xadrez em branco e vermelho, com uma pequena fechadura na lateral, por ela escolhido como presente de aniversário de treze anos.

Através dele, registrou o longo período de mais de dois anos em que ali permaneceu enclausurada, evitando sair às ruas. As notas por ela escritas descreviam medos, angústias, a segregação racial sofrida pela família, o tédio, as típicas oscilações de humor de adolescentes.

Mesmo assim, predominavam nos escritos sentimentos de esperança de a guerra terminar e a vida normal ser retomada. Acreditava poder publicar seus relatos, documentando aquele momento histórico. A ideia, inclusive, fora incentivada pelo ministro da educação holandês, então exilado em Londres, em um pronunciamento transmitido pela imprensa da época: se a população escrevesse diários e cartas, estes seriam coletados após o fim do conflito e, posteriormente, partilhados com o mundo.

Em 04 de agosto de 1944, contudo, os nazistas descobriram o esconderijo, prenderam e separaram as famílias. Anne Frank e Margot foram poupadas da execução em câmara de gás. Porém, após serem enviadas para um campo de concentração na Alemanha, contraíram tifo e entre fevereiro e março de 1945 não resistiram.

Dos oito abrigados, apenas Otto conseguiu sobreviver. O retorno a Amsterdã ocorreu no mesmo ano da morte de suas filhas. O diário de Anne, recuperado, foi a ele entregue.

Em 1947, foi publicado pela primeira vez “O diário de Anne Frank”. Desde então, tornou-se um dos livros de não ficção mais importantes sobre o Holocausto, traduzido em vários países.

Já o escritor português José Saramago (1922-2010), vencedor do Prêmio Nobel de Literatura (1998), decidiu escrever entre os anos de 1993 e 1995 sobre seus dias em Lanzarote, no arquipélago das Ilhas Canárias.

Saramago para ali se mudou na companhia da esposa Pilar del Rio, após sofrer censura do governo português em 1992, devido à publicação do livro “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, de 1991, no qual contou uma versão ficcional sobre as escrituras bíblicas, gerando indignação principalmente entre católicos.

Com base nas notas de dia a dia, o escritor lançou posteriormente a coletânea “Os Diários de Lanzarote”, no qual discorria sobre opiniões políticas, literárias e culturais, contava alguns encontros e viagens, partilhava angústias e frustrações. Para seus leitores, uma oportunidade de conhecer um pouco melhor o homem por trás do famoso escritor.
 

Diário: escrevê-lo por quê?

Assim como Anne Frank e José Saramago, escrever um diário pode ser benéfico por diversos fatores.

Em primeiro lugar, se uma pessoa tem problemas, o simples fato de poder escrever sobre eles já constitui uma higiene mental, capaz de relativizar e até diminuir angústias, medos ou situações de estresse e ansiedade, o que contribui para a saúde como um todo. Por isso, profissionais como psicólogos e terapeutas apoiam a iniciativa.

Além disso, é uma maneira de revisitar momentos e renovar a alegria das experiências vividas. Melhora, também, a autoconfiança e proporciona autoconhecimento. É comum ao redator, por exemplo, voltar ao diário e, após o reler, se descobrir totalmente diferente do que já foi em outros tempos. Isto é, se ver como alguém que conseguiu evoluir.

Outros benefícios vão desde o estímulo da criatividade e da capacidade de auto-organização até a motivação de traçar novos planos e metas de vida.

Quem redige um diário melhora a expressão escrita e, inclusive, pode produzir registros sobre a época e a sociedade em que vive, tal como Anne Frank o fez.

Por fim, a melhor forma de desenvolver as relações interpessoais é começar explorando a própria relação consigo mesmo. E este, sem dúvida, é um ótimo exercício proporcionado pelas anotações do a dia a dia, lançados num diário.
 
A queda da popularidade do diário e sua reinvenção digital


Atualmente, manter um diário é uma prática menos comum do que já foi no passado. Parte disso se deve à valorização das interações interpessoais em detrimento dos momentos que exigem maior privacidade.

Este movimento começou nos anos 1990, com a popularização da internet, e se solidificou com o surgimento das redes sociais a partir dos anos 2000, dentre elas o Facebook (2004), o YouTube (2005), o Twitter (2006) e o Instagram (2010). A elas, soma-se a popularização de blogs no mesmo período.

Com estas ferramentas, agregadoras de recursos multimídia, compartilhar situações, opiniões e até pensamentos com amigos virtuais ou o público de internautas em geral se tornou uma tendência.

Mesmo assim, redigir um diário nos dias de hoje ainda encontra adeptos e, a partir de 2020, após o necessário distanciamento social iniciado devido à pandemia mundial de covid-19, o hobby teve um aumento de interesse por parte da sociedade. Ademais, já não é um hábito restrito a caneta e papel, podendo ser feito também de maneira eletrônica.

Por isso, se uma pessoa pretende manter um diário, tanto pode fazê-lo em um caderno físico quanto em sites – como o “Meu querido diário” – e aplicativos de tablets e smartphones, dentre eles o “Day One Journal”, o “Diaro”, o “Daylio” e o “Daybook”. As funcionalidades incluem, de acordo com a plataforma escolhida, senhas de proteção, backup, armazenamento na nuvem, uso de recursos multimídia, integração com redes sociais e exportação de documentos em formato “*pdf”.
 

Diário: por onde começar?


Escrever um diário é uma tarefa simples, daquelas que não exigem muito para serem começadas. Primeiro, deve-se decidir o formato, se físico ou digital, e sobre o que se vai escrever.

Depois, vem a escolha do melhor horário, que varia de pessoa para pessoa, e do lugar, preferencialmente um ambiente reservado e longe de distrações. Por fim, é preciso manter a assiduidade, criando o hábito.

De qualquer forma, o importante mesmo é começar, devagar que seja, com a redação de uma ou de poucas frases por vez. A estética, cobrada em textos acadêmicos, não precisa ser uma preocupação. Qualquer formato é válido, de prosa a poesia, de parágrafos soltos a relatos completos de um evento, de um dia, de uma semana ou de qualquer outro período de tempo.

As regras ficam a cargo de quem escreve e, por isso, mudam de acordo com a necessidade do dono do caderno.

E isto, sem dúvida, faz do diário um espaço tão atraente e amigável, seja para Doug, Anne Frank e Saramago, seja para qualquer pessoa que com ele decida passar algum tempo na vida e, com isso, sentir-se melhor.

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