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04/07/2022 às 19h57min - Atualizada em 04/07/2022 às 12h28min

Um caminho para a preservação da manifestação religiosa afro-brasileira e do Meio Ambiente

Oferendas sustentáveis e o uso de produtos naturais biodegradáveis são soluções que preservam os espaços naturais sagrados

Renata Nalim - Editado por Giovana Rodrigues
(Foto/ acervo FAUERS)
Quem come inhame é Oxaguiã. Oxum gosta de feijão fradinho. Exu preza a cachaça. Quem saúda os orixás são os filhos de santos e milhares de simpatizantes. Os orixás são divindades da mitologia africana iorubá cultuados nas religiões de matriz africana e reverenciados nas cantigas, danças e oferendas.

As oferendas são um ato de fé e uma referência às entidades espirituais, sendo entregues, na maior parte das vezes,  nas matas, nas florestas e nos ecossistemas hídricos. O Biólogo e umbandista, Pedro Augusto Trasmonte da Silva, expressa que “levar as oferendas nesses pontos de força é uma forma de estabelecer e fortalecer conexões, relações e diálogos com os ancestrais, encantados e orixás que ali se manifestam''.

No dia dois de fevereiro, por exemplo, Iemanjá é cultuada nos mares de diferentes regiões do Brasil por fiéis, que levam rosas brancas, velas brancas e azuis, perfume, sabonete, espelho, nos pequenos barcos. A forma de presentear a rainha do mar tem mudado à conta de uma mentalidade sustentável, durante a homenagem. Um exemplo de iniciativa que se preocupa com a preservação dos ecossistemas naturais e religiosos é a “Campanha Praia Limpa para Iemanjá” realizada pela Federação Afro Umbandista e Espiritualista do Rio Grande do Sul (FAUERS), desde 2009.
 
A diretora de projetos da FAUERS e pedagoga, Maria Inês Pacheco, explica que a campanha permite conscientizar às pessoas sobre as práticas sustentáveis e responsáveis ao realizar as oferendas nos ecossistemas naturais sagrados: 
 

-Nosso lema é “a natureza é o altar de todos nós” e aplicamos em todas as oferendas que realizamos. Entendemos que a nossa manifestação de fé e o respeito religioso têm que ser ecológico. A partir de janeiro começamos o preparativo da campanha de Iemanjá, produzindo as oferendas e oferecendo as oficinas, que ensinam como preservar e interagir de forma harmônica com o meio ambiente por meio da preparação dos barcos biodegradáveis. 
 



 A diretora também comenta que com a aplicação da campanha foi notório perceber a diminuição de resíduos na praia da Cidreira, localizada no município de Cidreira (RS), na última década:
 

-Antes da implementação da campanha, na praia de Cidreira encontrávamos madeira e os pregos dos barcos e plásticos. Por meio da nossa ação, percebemos a diminuição dos resíduos nas praias. Nós trabalhamos com a conscientização ambiental e muitos adeptos foram impactados positivamente, o que beneficia a região.

 
“O ambiente é crucial para a prática do ritual afro-religioso”
 
A natureza é o espaço sagrado dos orixás, assim como dos voduns e dos nkisis, e a preservação da manifestação cultural afro-brasileira. O filho de santo do Terreiro de Umbanda Despertar das Almas e estudante de Direito da PUCPR, Thiago Pinheiro de Carvalho, esclarece a importância da natureza para a prática do ritual afro-religioso:
 

- A natureza tem papel central na cosmogonia religiosa afro-brasileira, de modo que diversos locais são considerados sagrados, pois ali vivem os Orixás ou eles são os Orixás. Utilizarei o exemplo das matas, as quais têm como senhor o orixá Oxóssi: as religiões interpretam que tal orixá vive nesse ecossistema e, ou, que o orixá é tal ecossistema. Independentemente de qual visão o terreiro adotar, o fato é que o ambiente é crucial para a prática do ritual afro-religioso. E, quando falamos de locais sagrados, abrangemos os ecossistemas florestais e hídricos, mas também há áreas no espaço urbano de relevância similar, como as encruzilhadas e linhas de trem. Desse modo, é notável a importância do ecossistema natural para a realização da prática religiosa, já que tal localidade pode ser considerada o próprio Orixá, a própria divindade.

 


A consciência ambiental coletiva por praticantes de cultos afro-religiosos ganha força para a manutenção do equilíbrio dos planos material e astral, tanto que muitos já reconhecem os efeitos prejudiciais que artefatos não-biodegradáveis causam na natureza.
 

“Louças, alguidar, tecidos sintéticos, barcos de isopor, espelhos e plástico são alguns exemplos de artefatos amplamente vendidos por redes de artigos religiosos para compor as oferendas e que possuem tempo indeterminado de decomposição”, aponta o umbandista, Pedro Augusto, que acrescenta “hoje, os artefatos sintéticos são substituídos por produtos naturais biodegradáveis, as oferendas são recolhidas após o tempo de assentamento”.

 
Segundo o umbandista Thiago Pinheiro, é possível a utilização de materiais biodegradáveis ou orgânicos no oferecimento de oferendas trocando, por exemplo, o copo plástico pela cambuca feita de coco e o prato plástico pelo alguidar de barro; mas é importante lembrar que “tais religiões de culto afro religiosos, no Brasil, encontram-se em estado de vulnerabilidade social, de modo que se afetar o custo de maneira alta, a praticidade fará com que a utilização de elementos não biodegradáveis seja utilizada”.
 
Para Thiago, os terreiros e barracões estão a todo momento passíveis de ameaças, pois representam a parte religiosa excluída do quadro social de admiração; sendo assim “manter o terreiro em funcionamento já é uma dificuldade pulsante pelas questões financeiras e caso não haja a praticidade e a acessibilidade aos produtos biodegradáveis, dificilmente serão utilizados por tais comunidades”.
 
Acessibilidade aos produtos biodegradáveis
 

A fim de preservar os espaços naturais sagrados, promover e valorizar a tradição dos povos terreiros, o Instituto Terreiro Sustentável - fundado pelo pedagogo, biólogo e babalorixá Rodrigo Carneiro - fornece oficinas de educação ambiental e projetos que ensinam a produzir oferendas sustentáveis aos interessados.
 
“O Instituto possibilita organizar e produzir materiais e oficinas para os povos de terreiro. Resgatamos e repensamos como as oferendas podem ser biodegradáveis e orgânicas. Conseguimos desenvolver alguidar de folhas, técnicas para trançar as folhas que substituem os balaios, biojóias, bonecos feitos com palha de milho e esponja vegetal”, afirma Rodrigo que manifesta: “é uma das formas de  resgate dos saberes e fazeres ancestrais. Quando restauramos a prática, consequentemente retomamos o conhecimento ancestral e vamos a favor do que  os ancestrais pregavam que é  Kó si ewé, kó sí Òrìsà (sem folhas não há orixá) e Kó si omi,  kó sí Òrìsà  (sem água não há orixá) ”.
 
Acesse o manual para elaborar o balaio cerimonial sustentável, idealizado por Rodrigo Carneiro e Ana Angélica Monteiro



O babalorixá Rodrigo Carneiro de Oxalá explica que os fazeres e saberes ancestrais seguem aliados aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, que incluem questões sobre meio ambiente, educação, desenvolvimento social e econômico, dentre outros.
 

“Os ODS seguem os princípios dos saberes e fazeres ancestrais. Introduzi-los nos terreiros é uma forma de comunicação entre os povos tradicionais e a sociedade civil. Tínhamos a necessidade de traduzir os 17 ods para a nossa linguagem. Nós temos omi (água), ewé (plantas sagradas) e ilè (terra), que fazem parte do nosso corpo e da nossa vida. A natureza é a nossa casa e somos a casa da natureza. Trazer essa cosmovisão para a Agenda 2030 é importante para atingirmos as metas e garantir políticas públicas aos povos de terreiros”, expõe o babalorixá.





A Agenda 2030 dos Povos de Terreiros, organizada pelo Instituto Terreiro Sustentável e mais de 200 colaboradores de todo o Brasil, soma  as metas da ONU e  a cosmovisão dos povos de terreiro.  O plano de ação indica algumas metas que caminham para o desenvolvimento sustentável da manifestação cultural afro-brasileira e do meio ambiente, sendo elas: promover educação ambiental popular de terreiro; preservar os espaços naturais sagrados e todos os seres vivos; implementar os 11R’s da sustentabilidade nos terreiros e nas comunidades; promover a conscientização, preservação e restauração dos espaços naturais sagrados de água doce.
 
Empoderamento dos projetos sustentáveis afro-religiosos
 

Com a ausência de políticas públicas de inclusão social por parte dos órgãos do Estado e a desigualdade social, econômica, histórica e cultural, que assola as comunidades oriundas de matriz africana, o apoio de empresas sustentáveis é fundamental para dar voz e visibilidade aos projetos em prol da sustentabilidade de comunidades de terreiro.
 
O pai de santo Rodrigo Carneiro  explica que o apoio do setor privado pode “oportunizar acessos e empoderamento aos projetos por serem marcas reconhecidas'', considerando que, a maioria, dos povos tradicionais de terreiros são invisibilizados pelo poder público e encontram-se em situação de vulnerabilidade social. Ele também pontua que muitas das empresas possuem editais de incentivo, mas, muitas das vezes, “não temos capacidade técnica ou portfólio para atender os requisitos”. 

No Brasil, os editais de empresas sustentáveis fomentam as iniciativas por meio de incentivo financeiro, processo de capacitação, aceleração, cocriação e mentorias. “Ações de reconhecimento dos saberes tradicionais, formação, mentorias e editais específicos” são incentivos fundamentais entre uma cooperação da iniciativa privada com projetos de multiplicidade religiosa-ecológica-sustentável, afirma Carneiro.


Referências

Jornal do Comércio. Com festas oficiais suspensas, homenagens a Iemanjá devem concentrar menos visitantes nas praias, 2022. Disponível em:<https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/economia/2022/02/831506-com-festas-oficiais-suspensas-homenagens-a-iemanja-devem-concentrar-menos-visitantes-nas-praias.html> Acesso em 02 de junho de 2022
 
G1 Bahia. Conscientização ambiental marca escolha das oferendas para Iemanjá, 2016. Disponível em:<https://g1.globo.com/bahia/verao/2016/noticia/2016/02/conscientizacao-ambiental-marca-escolha-das-oferendas-para-iemanja.html> Acesso em 02 junho de 2022
 


 
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