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28/08/2022 às 16h47min - Atualizada em 26/08/2022 às 17h44min

Artigo de opinião | É possível que lendas e realidade se misturem?

Em uma época onde lendas parecem ter ficado no passado, refletir sobre sua preservação cultural é olhar para o futuro

Mariana da Silva - editado por David Cardoso
Minhocão do Pari, monstro mais conhecido do folclore mato-grossense. (Foto: Mariana da Silva/Arquivo pessoal)
Provavelmente existe na memória de cada um lembranças distantes em que num dia de sua infância na escola primária as crianças vestiam-se de fantasias, liam contos e entoavam cantigas em uma semana temática com apresentações teatrais e aulas diferenciadas. Isso pois no oitavo mês de todos os anos comemora-se o mês do Folclore no Brasil, tendo como data instituída o dia 22 de agosto, reconhecido como Dia Nacional do Folclore, criado em 1965 por meio de um decreto assinado pelo presidente Humberto Castello Branco.
 
A origem do termo remete ao século XIX, com a junção das palavras folk e lore, em algo como “conhecimentos de um povo”, o que ao contrário do senso comum não abarca somente as conhecidas lendas folclóricas. O folclore tem por características principais alguns aspectos da cultura popular como oralidade, tradição, autoria desconhecida e espontaneidade, agregando também elementos como as danças e músicas típicas, o artesanato, elementos artísticos, festejos, entre outros. As lendas seriam uma parte do que é conhecido pelo folclore.

Para alguns ele é reduzido apenas a um conjunto de mitos ou meras estórias fantasiosas inventadas pelos mais antigos em um passado longínquo que não cabe mais na atualidade. Mas para outros, as lendas do folclore foram sim reais e proporcionaram argumentos (ainda que não científicos) para fenômenos ou acontecimentos que não tiveram explicações naquela época.
 
Nelas estão contidas implicitamente o contexto social, econômico, cultural, religioso e diversos aspectos que abarcam a realidade de onde surgiram as lendas em seus contos, personagens e paisagens. Através delas se pode conhecer o cotidiano e a história de uma população, muitas vezes revelando até características geográficas, étnicas, familiares, psicológicas, etc.
 
Nas diversas regiões que constituem o estado de Mato Grosso as lendas se fazem muito presentes nas comunidades tradicionais, ribeirinhas, pantaneiras e interioranas onde histórias como a do Minhocão do Pari, Nego d’água, Pé de Garrafa, Mãe-do-ouro, Mãe d’água, Noiva de Branco, Tibarané, dentre outros resistem a “racionalidade” urbana e globalizada que desacredita dos antigos saberes.
 
É possível notar que as lendas regionais se assemelham muito a de personagens de lendas nacionalmente conhecidas, que surgem de diversas regiões do país e formam o imaginário coletivo de lendas do folclore brasileiro. Curupira, negrinho do pastoreio, boitatá, sereia Yara, lobisomem, boto rosa, mula sem cabeça, são diversos aqueles que se assemelham, mudando certos detalhes para o cotidiano das localidades com um tom mais específico.
 
Estórias de seres, assombrações, visões, fenômenos, aparições são as mais comuns. Uns foram gente, outros são bichos e ainda os que foram gente e depois se tornaram bicho, é até difícil explicar. Há locais que também tomam para si como parte das lendas, onde nem sempre o destaque é para o ser em si, mas a sua ambientação o foco.
 
Existem os seres maldosos, que foram castigados por serem muito ruins e os seres protetores, que usam de sua fúria para guardarem os locais onde vivem contra caçadores, garimpeiros, madeireiros ou quem quer que vá ao seu espaço para fazer algum tipo de modificação na natureza ou praticar mal contra pessoas, animais ou plantas.
 
Algumas das lendas possuem inclusive um fundo de conscientização, ainda que não tão aparente, mas com uma mensagem por trás. Por vezes surgem como formas de realmente aterrorizar crianças e curiosos, para que assim evitem de ir a locais perigosos como rios, matas e locais abandonados estando desacompanhados e também por diversos outros motivos.
 
Sem dúvidas a lenda mais conhecida de Cuiabá e Mato Grosso é a do Minhocão do Pari. Semelhante a um tipo de monstro do Lago Ness cuiabano, minhocão é tido como uma grande serpente que viveria no rio Cuiabá, apontado como responsável por desaparecimentos e barcos naufragados. A lenda é repassada através das gerações de pescadores, ribeirinhos e famílias que vivem próximas aos rios, e é dito que o minhocão teria desaparecido durante a grande enchente de 1974.
 
 
Mas existem também as lendas urbanas, pouco menos desacreditadas por sua vez, que se passam nas grandes cidades e metrópoles. Algumas se embasam em acontecimentos trágicos ou pessoas que de fato existiram, mas com peculiaridades em sua narrativa, indo para o lado do sobrenatural. Essas personagens supostamente existiram em locais como casas, prédios, praças e cemitérios mal assombrados, onde mortes trágicas ocorreram, ou mesmo se envolveram em crimes bárbaros, acidentes, etc.
 
Um fato que mistura lenda e realidade em Cuiabá é o cemitério do Cai Cai, onde milhares de pessoas foram enterradas em valas comuns em 1867. Após a Guerra do Paraguai pela reconquista de Corumbá, militares brasileiros retornaram infectados pela varíola resultando em uma epidemia que vitimou aproximadamente 4 mil vidas, um número que na época representava parte significativa da população total, em torno de 13 mil habitantes.
 
O impacto foi sentido duramente, ceifando grande parte da população da época que teve como destino as valas do distante cemitério feito especificamente para os que morriam da varíola, devido ao temor da contaminação pelos mortos.
 
Existem relatos onde pessoas afirmam que avistaram o que seriam almas de falecidos acometidos pela doença vagando neste cemitério, que na verdade possui o nome de Nossa Senhora do Carmo, mas ficou conhecido por Cai Cai, por conta do suposto som de sussurros que se ouvia de lá.
 
Hoje em dia o que restou do cemitério foi a Praça Manoel Murtinho construída sob o local, depois de ser completamente destruído para a construção da Avenida São Sebastião, deixando no completo esquecimento a antiga história do lugar e as vidas dos combatentes e outros acometidos pela varíola que descansam solo abaixo.
Portanto, é fato real e documentado que a enfermidade acometeu e dizimou mais de mil pessoas em 1867, já o lado sobrenatural da história é o que faz parte dela possivelmente uma lenda nesse aspecto narrativo, mas não uma mentira.
 
É dito ainda que à época da epidemia o temor da vacina fez com que muitos não se imunizassem, dando margem para o aumento dos casos e mortes ocorridas. Já em 2020 e 2021 com a Covid-19, a história da varíola e do cemitério foram novamente bem lembrados pelos jornais locais como uma enfermidade do passado que vitimou grande parte da população cuiabana. Nesses casos, seria possível aprender com base em algumas “lendas” como precaver certos acontecimentos.
 
Apesar disso, o que se pode extrair desse fato, por exemplo, é a conscientização para a doença, de modo que não caia no esquecimento o fato histórico, que inclusive vem tomando conta dos noticiários novamente em agosto de 2022, com a mais recente disseminação da Varíola do Macaco, a Monkeypox.
 
De modo geral, as lendas tocam em um ponto profundo das crenças populares. Em certos casos, nem sempre quem as conta ou acredita nelas sequer viu algo relacionado a elas para crer, mas tomou como verdade o que lhe foi passado, visto que um dos pontos cruciais das lendas é o embasamento na oralidade. São estórias que atravessam gerações por meio da tradição oral e carregam memórias afetivas, geralmente contadas em fases da vida por pessoas muito próximas.
 
Encarar as lendas como inerentes às culturas, antes de tudo deve ser feito de forma respeitosa, pois diz muito sobre o contexto das pessoas e localidades, ainda que seja visto de forma espetaculosa ou surreal na visão de quem é de fora, no entanto faz muito sentido para as crenças das pessoas envolvidas.

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