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10/02/2023 às 20h10min - Atualizada em 10/02/2023 às 19h49min

A África contada na voz da África

Confira: 7 autores para conhecer a literatura africana e seu valor político-social

Mayara Beani - labdicasjornalismo.com
Editado por Fernando Azevêdo
Foto: Pixabay


“(...) E agora são elas que me pedem que fale como se fosse no Jango, ou na Ciota, porque não têm tempo, entre procurar a água, lavrar a terra, mudar a mandioca, tratar dos filhos, para soltar os gritos que se lhes espetam como facas na garganta, na luta entre memória e esquecimento... Pedem-me que grite enquanto tocam a vida em frente todos os dias, todas as noites.”

Essas são as palavras de Ana Paula Tavares, em “Desafiar o silêncio”, crônica que faz parte de seu livro “Um rio preso nas mãos”, que fala exatamente sobre a reivindicação das mulheres africanas do direito à palavra, bem como esse poder político e social que a literatura tem, de dar voz a quem um dia não teve. 
 
Literatura Africana

A literatura africana - se é que é correto assim falar, colocando num mesmo balaio as obras e autores de Angola, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau (citando aqui apenas as escritas em português, também chamadas lusófonas) – têm sua origem, ou melhor, renascimento na contracultura do pensamento e literatura coloniais, nascidas como uma forma de protesto e negação. Surgidas como uma maneira de impor sua própria história e impedir o esquecimento, como Ana Paula Tavares cita no trecho que abre esta matéria.

Digo renascimento, pois, conforme cita o estudo de Josilene Silva Campos (A Historicidade das Literaturas Africanas de Língua Oficial Portuguesa), a literatura e a cultura desses países nasceram e se perpetuaram na oralidade, nos contos, causos e relatos que foram transmitidos pela fala, pelas músicas e rezas ao longo dos anos, e que a colonização tentou anular, fazer esquecer, pela velha máxima de que “o que não foi escrito, não aconteceu”.

A literatura africana foi e segue sendo política e social: uma forma de resistência e solidariedade ao povo negro, baseada na oralidade, valorização do passado e da nação. É marcada pela incorporação de elementos da oralidade, a desconstrução gramatical da língua portuguesa oficial e pelo uso de línguas e expressões culturais nativas, desmistificando, contudo, os exotismos e as excentricidades criadas pelos não-africanos. Em resumo, a literatura africana é a busca da voz, a busca do “nós”, do direito de contar a própria história.

Poema “Motivo”, do angolano Costa Andrade:
“Juntei na mão
Os meus poemas
E lancei-os ao deserto
Para que as areias
Se transformem em protesto”

A atualidade e o fomento à Literatura Africana

Mas este é ainda um trabalho de formiguinhas, que vem ganhando espaço muito lentamente. Entre os 15 títulos mais vendidos em 2022, conforme listagem publicada pela Amazon, cerca de 70% dos autores são norte-americanos. Nenhum título de origem africana é citado. O mesmo ocorre quando consultamos a listagem da Wikipédia, dos livros mais vendidos da história, em que vemos que nove dos dez primeiros títulos são de autores europeus, o 11º é estadunidense e, novamente, nenhum título ou autor africano é citado.

Isso explica, então, a dificuldade que tive de encontrar leitores que já tivessem tido contato com a literatura africana e sua diversidade, para compartilhar suas experiências. Esta mesma que voz fala, maníaca por livros desde a infância, filha e neta de professores, só teve contato com essa vertente muito recentemente, por meio justamente de Ana Paula Tavares, indicação de leitura de um clube do livro.

Em entrevista, Paulo César Ribeiro Filho, doutor em Letras pela FFLCH-USP na área de Literatura Infantil e Juvenil, cita que tomou conhecimento de obras e autores africanos principalmente ao longo das aulas de Literaturas Africanas que cursou durante a graduação em Letras, a maioria ministrada pela professora doutora Rejane Vecchia. Sendo do meio literário, também teve acesso a parte desses títulos por meio da professora doutora Avani Souza Silva, amiga pessoal e pesquisadora, autora do livro “A África recontada para crianças”.

Paulo ressalta que para melhor fomento desta vertente literária, além da importante promulgação de leis para a difusão da cultura africana, um trabalho menor, mas efetivo, vem movimentando o setor, por meio de pequenas editoras (e destaca aqui o trabalho das editoras Malê e Kapulana), que têm buscado autores e traduções de obras africanas, como também divulgações individuais, leituras coletivas em clubes e entrevistas com autores. Mas finaliza ressaltando que as escolas são “um verdadeiro campo onde importantes semeaduras são continuamente realizadas”, reforçando, então, a importância da capacitação do corpo docente neste tema.

Contando um pouco sobre a sua experiência de leitura, Paulo diz que:
“A leitura dessas obras representou uma porta de acesso a mundos que são, ao mesmo tempo, familiares e exóticos, pois compartilhamos inúmeros costumes e mundividências com boa parte dos países africanos de língua oficial portuguesa. Por outro lado, em cada uma das obras é possível reconhecer uma gama vívida e contrastante de cores locais, o que colabora com o processo de individuação dos países — já que se tem uma ideia equivocada de “África” como um “continente-país” uno, coeso e mais ou menos homogêneo de norte a sul. Isso porque esse recorte só dá conta de poucos países. Ainda há muito o que se encantar com as literaturas africanas."

Nathália Dionizio de Andrade, 25, fotógrafa e amante de poesia e literatura, compartilhando sua experiência na leitura de " Terra Sonâmbula", do Mia Couto, relata ter sido uma experiência bem diferente por várias questões, apesar da língua ser a mesma. Ela diz acreditar que o significado não seja o mesmo, pois eles [autores africanos] têm outras estéticas e visões de mundo. Nathália afirma ainda:
 
“Acredito que todas as obras dele me impactaram muito. Me fez pensar e olhar um mundo em forma de poesia diariamente. A obra do Mia Couto principalmente a ‘Terra Sonâmbula’ me fez querer acreditar mais na vida é também sonhar com ela. Acredito que as obras que me impactaram tanto que o trabalho dele é único que me inspira até hoje a querer continuar a criar arte para um mundo melhor.”

Eu, Mayara Beani, 35, devo confessar que na leitura dos primeiros contos de “Um rio preso nas mãos”, de Ana Paula Tavares, emperrei, engasguei, pensei em desistir pela dificuldade em associar o português e os dialetos e expressões, nada que também não tenha sentido ao ler Vinicius de Moares:

- Vinicius, como você é difícil – dizia para ele todos os dias,

Porém, os olhos vão se acostumando ao ritmo, e breve, muito breve você começa a enxergar - 'se olhar tempo suficiente para o escuro, vai acabar vendo algo' - nas palavras da autora. E flui com a sua narrativa cheia de paixão e revolta.

Recomendações de leitura

Bom, sem mais delongas, cumprindo nosso papel de formiguinha no fomento da literatura de África, com a curadoria do Paulo César, e de nossa editoria, indicamos a seguir alguns autores e obras africanos, pra você começar a degustar.

Ana Paula Tavares
Ana Paula Tavares

Ana Paula Tavares

Foto: Reprodução/Editora Kapulana

Ana Paula Ribeiro Tavares, angolana de Lubango e nascida em 1952, é historiadora e poetisa. Trabalhou nas áreas de cultura, museologia, arqueologia e etnologia, patrimônio, animação cultural e ensino. Atualmente, vive em Portugal, fez o doutorado em Antropologia na Universidade Nova de Lisboa intitulado "História e memória: Estudo sobre as sociedades de Lunda e Cokve de Angola" e leciona na Universidade Católica de Lisboa.

Destacamos aqui o já citado “Um rio preso nas mãos” (2019), dentre suas obras de poesia e crônicas.
 
Olinda Beja
Olinda Beja

Olinda Beja

Foto: Reprodução/Maratinadelitura


Nascida em São Tomé e Príncipe, na cidade de Guadalupe, em 1946, cresceu e estudou em Portugal e viveu na Suíça. Era professora do Ensino Secundário e escritora/contadora de histórias. “A escrita é a âncora da minha vida. Sem ela já há muito me teria afundado”, diz por vezes.

Em 1985, regressou a São Tomé e Príncipe. Encantada com a sua terra materna, ela decidiu divulgar as histórias de seu país e seu povo por meio de sua escrita.

Dentre suas várias obras, de contos, poemas e romances, ressaltamos aqui “Chá do Príncipe”, livro de contos de 2017.
 
Mia Couto
Mia Couto

Mia Couto

Foto: Reprodução/Wikipédia


Antônio Emílio Leite Couto, que escreve sob o pseudônimo Mia Couto, é escritor e biólogo moçambicano, nascido em 1955. Passou a exercer a profissão de jornalista depois da Revolução dos Cravos, de 1974, em Portugal. Publicou seu primeiro livro de poesias em 1983. Ele é o escritor moçambicano mais traduzido, tendo obras publicadas em alemão, francês, castelhano, catalão, inglês e italiano.

Atualmente, atua como biólogo em Avaliações de Impacto Ambiental em Moçambique e é professor da cadeira de Ecologia em diversos cursos da Universidade Eduardo Mondlane (UEM).
 
Das obras de Mia Couto, destacamos a recomendação da Nathalia, o romance “Terra Sonâmbula”(1992), mas seu repertório contém, além da poesia que o tornou mundialmente conhecido, contos e crônicas.
 
Paulina Chiziane
Paulina Chiziane

Paulina Chiziane

Foto: Reprodução/Bauru literatura


Moçambicana, nascida em 1955, cresceu nos subúrbios da cidade de Maputo. A família dela falava as línguas Chope e Ronga. Ela aprendeu o português na escola de uma missão católica. Iniciou, mas não concluiu seus estudos de Linguística, na Universidade Eduardo Mondlane.

É a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, iniciando suas atividades literárias em 1984, com contos publicados na imprensa. Esteve fortemente envolvida em questões políticas e suas narrativas políticas e sociais ainda geram discussões polêmicas no país. Atualmente, Paulina vive e trabalha na Zambézia e diz ter decidido abandonar a escrita, por estar cansada das lutas travadas ao longo da sua carreira.

Das suas obras, Paulo César nos recomendou “Ventos do Apocalipse” (1993 – Literatura de Ficção)

 Maria Celestina Fernandes
Maria Celestina Fernandes

Maria Celestina Fernandes

Foto: Reprodução/wook


Angolana nascida em Lubango (províndica da Huíla), mudou-se para Luanda, onde cresceu e se formou. É assistente social e licenciada em Direito. Iniciou a carreira literária no início dos anos 80, tendo como foco a iteratura infantojuvenil, tendo algumas obras traduzidas para outros idiomas.

Destas, destacamos Kalimba (2015)
 
Pedro Pereira Lopes 
Pedro Pereira Lopes

Pedro Pereira Lopes

Foto: Divulgação/Editora Kapulana


Moçambicano, nascido na Zambézia, em 1987, é contador de histórias e poeta. Mestre em Políticas Públicas pela Escola de Governação da Universidade de Pequim, é docente e pesquisador no Instituto Superior de Relações Internacionais, em Maputo. É o fundador da “Lidilisha” (web-revista de literatura ) e do “Projecto Ler para Ser”. 

Paulo recomenda a leitura de “Viagem pelo mundo num grão de pólen e outros poemas”, de 2015.

Ngozi Adichie
Ngozi Adiche

Ngozi Adiche

Foto: Divulgação/Manny Jefferson



Chimamanda Ngozi Adichie, nigeriana nascida em 1977, diferente dos demais autores aqui citados, é reconhecida como uma das mais importantes jovens autoras africanas em língua inglesa, ao invés da língua portuguesa. Em 2003, completou seu mestrado em Escrita Criativa na Universidade Johns Hopkins e, em 2008, recebeu o certificado como mestre de Artes em Estudos Africanos pela Universidade Yale. É uma das 100 Mulheres da lista da BBC de 2021.

Aqui, destacamos seu primeiro romance, “Purple Hibiscus” (2003), ou “Hibisco roxo”, titulo com o qual foi publicado no Brasil.
 
E mais

Estas foram apenas algumas recomendações. Há ainda mais: Jorge Araújo é o autor de “Cinco baças contra a América”(2009), Noemia de Sousa, Jorge Viegas, Antonio Soares Lopes, Pepetela e Costa Andrade - citados no artigo de Josilene Silva Campos. Existe um universo de referências em língua portuguesa e outra infinidade em traduções.


 
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