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25/03/2024 às 10h13min - Atualizada em 23/03/2024 às 14h03min

A representação estereotipada do Nordeste pela mídia

Pobreza, seca e ignorância são algumas das características que produções audiovisuais associam à região

Camila Silva - publicado por Malu Figueiredo
Caracterização dos atores para a novela 'No Rancho Fundo'. Foto: Divulgação.

É comum assistirmos à diversas produções midiáticas, sejam elas novelas, filmes ou séries, que retratam e falam sobre o povo nordestino. Por vezes, essa localidade é representada por personagens que tenham sempre as mesmas características. Geralmente um sotaque marcado, com falas exageradas, permeados pela pobreza e miséria, caricatos, com toques de humor, ignorantes ou até mesmo ingênuos. Além disso, os papéis que envolvem personagens nordestinos são frequentemente interpretados por atores de outros estados, principalmente do Sudeste do Brasil, o que resulta em uma falta de representatividade e, consequentemente, reforça ainda mais os preconceitos nessas narrativas.

Embora a mídia ocasionalmente tente evitar esses estereótipos, até mesmo incluindo atores nordestinos em suas produções, como aconteceu na novela “ Mar do sertão”, tais adjetivos persistem em histórias que se localizam na região nordeste. Recentemente, um exemplo dessa perspectiva ocorreu na divulgação da nova novela da Globo, "No Rancho Fundo", em que os personagens são retratados sujos e mal vestidos. A novela, que estreia em abril, se passará no Nordeste. Muitos internautas criticaram essa imagem por reforçar estereótipos negativos relacionados a localidade. Infelizmente, isso só mostra como a região ainda sofre com a mesma visão clichê e retrograda de sempre.

O nordestino na teledramaturgia

Frequentemente um dos veículos que mais perpetuam essa visão estigmatizada é a televisão, sendo que o principal meio para isso são as novelas. A primeira trama ambientada na região foi um sucesso e estreou em 1969, chamada de Verão Vermelho. De autoria de Dias Gomes, a história se passava em Salvador e mostrava as festas de rua, rodas de capoeira e terreiros de candomblé. A partir daí, outras novelas situadas no Nordeste começaram a ganhar o gosto do público e também fizeram grande sucesso.

Como exemplo, temos “O bem-amado” (1973), a primeira telenovela em cores da televisão brasileira, e várias adaptações de livros de Jorge Amado, como “Gabriela” (1975) e “Tieta”(1990). Das mais recentes vimos; “Cordel Encantado” (2011), o remake da novela "Gabriela" (2012),“Velho Chico” (2016) e “Onde Nascem os Fortes”(2018). Em algumas dessas produções há o mesmo estilo caricato nordestino em seus personagens.



No artigo "A Representação da Identidade Regional do Nordeste", os autores João Sousa Eudes e Rafaela Ricardo Santos discutem como a dramaturgia frequentemente retrata personagens nordestinos com as mesmas personalidades. Entre elas estão os tipos: bobo, religioso ou cômico. O quesito religioso pode ser evidenciado por personagens como Perpétua em "Tieta", Maria Alita em "A Indomada" e Pombinha Abelha em "Roque Santeiro”. Já em relação ao cômico e ao bobo, podemos citar a personagem Socorro, de Cheias de Charme.



 

Quanto ao melodrama, os atributos são retratados de forma mais específica: o traidor, justiceiro, vítima e, de novo, o bobo. Um exemplo de vítima é Maria do Carmo de “Senhora do Destino”. Na história, sua filha foi roubada quando ainda era bebê. O papel de justiceiro é feito por Tieta, na novela homônima. Na trama, a personagem busca vingança contra aqueles que a prejudicaram. Em "Roque Santeiro", a personagem Viúva Porcina se encaixa no papel de traidora, ao fingir que foi casada com o Roque Santeiro. Já o tipo bobo é representado por Candinho, de "Flor do Caribe", um humilde vendedor de leite que desenvolve uma amizade incomum com uma cabra. Esse padrão comportamental persiste em diferentes histórias que mostram a região nordeste, quase sempre é o mesmo modelo. O ingênuo, pobre, profundamente religioso ou o rico, sendo arrogante, rude e de pouco conhecimento.



 
O nordestino no cinema


Na indústria cinematográfica, apesar de muitos filmes abordarem temas como a seca, o cangaço, o coronelismo e a pobreza, o cinema também apresenta narrativas que vão além esses estereótipos. Um exemplo é “Bacurau", que conta a história de uma cidade localizada no interior do Nordeste. Nessa narrativa, a comunidade enfrenta desafios como a escassez de água e falta de auxílio do governo. Conforme a trama se desenrola, eventos misteriosos ocorrem: a cidade desaparece do mapa, drones sobrevoam a região, carros são atacados a tiros e corpos aparecem. Ao mesmo tempo, estrangeiros de origem duvidosa chegam à cidade. Diante desses acontecimentos, os habitantes de Bacurau se unem para proteger sua comunidade e resistir à invasão estrangeira. O filme retrata a cultura nordestina de maneira autêntica, destacando a riqueza e diversidade cultural da região.


Trailer de 'Bacurau'. ( Reprodução: Fãs de cinema youtube)
 

E não podemos deixar de mencionar o amado e emblemático “Auto da Compadecida". Essa produção, dirigida por Guel Arraes e baseada na obra de Ariano Suassuna, aborda questões sociais e culturais do Nordeste com humor e sátira. Embora o filme seja alvo de críticas em relação a certos aspectos estereotipados, ele consegue transcender o convencional. Apesar de à primeira vista apresentar personagens característicos e até caricatos, como Chicó e João Grilo, que se enquadram nos estereótipos do cômico e do bobo, eles passam por um desenvolvimento que os torna mais aprofundados e complexos na narrativa, o que já difere do estereótipo. Alem disso, o filme também traz críticas sociais em relação à corrupção e à desigualdade social.



 

Além desses, podemos citar “Ó Pai, Ó", dirigido por Monique Gardenberg, "Aquarius", ambientado na capital de Pernambuco, Recife, e dirigido e roteirizado por Kleber Mendonça Filho; "Cinema, Aspirinas e Urubus", dirigido por Marcelo Gomes; e "Viajo porque preciso, volto porque te amo", dirigido por Marcelo Gomes e Karim Aïnouz. Estas produções fogem dos estereótipos ao retratar personagens locais de forma detalhada, oferecendo uma visão mais diversificada e realista do Nordeste.
 
Como eliminar esses estereótipos?

É importante entender que o Nordeste vai além do que é mostrado pela mídia, e que esses estereótipos acabam sendo tomados como realidade por quem os consome, alimentando preconceitos e desigualdades, reduzindo a visão de toda região a superficialidades. É necessário retratar o Nordeste para além do cangaço, da pobreza, da miséria e da seca. O nordeste e seu povo são culturalmente ricos, com uma abundância de belezas naturais, uma diversidade de tradições, sotaques, músicas, danças, culinária e muito mais.

O Nordestino não é atrasado, bobo ou ignorante. Cada estado da região possui sua própria particularidade e importância histórico-cultural. Reconhecer e retratar o Nordeste de maneiras diversa é o primeiro passo para diminuir e até mesmo acabar com esses estereótipos. Lembrando que o problema não está em abordar eventos reais que fizeram parte da história da região, como a seca, a pobreza, o cangaço e o coronelismo. O ponto é que as histórias não devem se limitar a esses temas e continuar na mesmice.

É preciso explorar e aprofundar os personagens que sejam nordestinos, sem reduzi-los a superfícies caricatas. O essencial é reformular a forma de contar histórias, as diferenciando do convencional. O audiovisual é uma importante ferramenta na construção da nossa sociedade: ela expõe, critica e retrata acontecimentos da vida real. Incluir nordestinos sem estereótipos, e contar histórias diferentes sobre o local, já é um bom começo para eliminar esses estigmas e retratar a realidade de um povo, que possui uma bela identidade cultural.

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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