Lab Dicas Jornalismo Publicidade 728x90
06/04/2020 às 20h06min - Atualizada em 06/04/2020 às 20h06min

RPG: vivendo outras vidas ao redor de uma mesa de jogo

Para jogadores, prática vai de entretenimento a forma de aliviar as tensões e desenvolver laços afetivos

Antony Isidoro
Representação dos jogadores e suas personagens em uma campanha de RPG / Foto: arquivo pessoal - Arte: Pedro Araujo Baptista Silva

"Como eles estão se divertindo tanto sem um videogame, ou sem uma bola?”. Foi o que pensou o estudante de design de games Pedro Araujo Baptista Silva, 23, na primeira vez em que viu alguém jogando RPG, ou Role-Playing Game (que é traduzido literalmente como “jogo de interpretação de papel”), um tipo de jogo narrativo em que os participantes geralmente criam personagens e assumem o seu papel em uma história.

 

 Isso foi há um bom tempo, ele tinha por volta de sete anos na época, e os jogadores em questão eram seu irmão mais velho e um grupo de amigos. Notando sua curiosidade, o grupo o convidou a se juntar a eles. “Não tinha nenhum sistema ou livro de regras, era bem simples mesmo, mas lembro de ter sido bem divertido”, conta Pedro. Depois daquela ocasião, ele perdeu o contato com o jogo. Seu irmão não jogou mais, e seus amigos na época não tinham muito interesse. 

 

A situação só mudou bem mais tarde, quando juntou um pequeno grupo de amigos da faculdade, com quem se reúne até hoje para jogar. O grupo agregou novos membros com o tempo, e hoje é formado por seis jogadores. “A gente começou com D&D e passou por muita coisa, velho oeste, heróis, cyberpunk, terror, e por aí vai”, comenta. “Nós sempre gostamos de diversificar bem os sistemas, e o cenário é sempre divertido ir mudando para diversos mundos”, complementa Flávio Maggiotto Dias, 22, designer de embalagem.

 

Em um RPG, o rumo da história é determinado pelas ações e escolhas dos jogadores (ou das personagens, mais precisamente), que eventualmente rolam dados para determinar se seus atos foram bem sucedidos, e que são conduzidos por um jogador especial chamado de mestre. Esse mestre tem ao mesmo tempo a função de narrador, descrevendo o cenário e as consequências das ações das personagens, e de árbitro, garantindo que todas as rolagens de dados estão de acordo com as regras do sistema que estão jogando. O RPG surgiu na década de 70, e de lá pra cá foram desenvolvidos vários sistemas de regras e cenários de jogo, que vão da fantasia medieval de Dungeons & Dragons aos horrores de Chamado de Cthulhu.

 

Estudos indicam que para algumas pessoas, os Role-Playing Games, além de uma forma de lazer e diversão, possibilitam adquirir conhecimentos e desenvolver habilidades úteis na vida real. Segundo o pesquisador de comunicação e cultura, Tadeu Rodrigues Iuama, “O que acontece num jogo acaba se tornando uma experiência nova para o jogador também, e entra no repertório dele pra vida”, ou seja, as situações vividas pelas personagens em uma narrativa podem contribuir para que os jogadores que as interpretam lidem melhor com casos semelhantes que acontecem no seu dia a dia. “Conversas, negociações, intrigas... Como RPG é bem teatral, ele ajuda nesses sentidos”, exemplifica o jogador Leonardo Horácio A. Salvador, 22, Analista de Contratos.

 

A diversidade de possibilidades que existem dentro desses jogos narrativos é uma das coisas que mais atraem os jogadores. E esse é um elemento proporcionado não somente pela grande quantidade de cenários e sistemas de regras existentes hoje em dia, mas também pela infinidade de personagens e histórias que podem ser criadas. “É um tipo de jogo que não dá pra se cansar, diferente de um jogo de videogame, é sempre uma história diferente, com personagens diferentes, em mundos diferentes”, argumenta Pedro. “A narrativa pode levar a qualquer destino, já que é uma história criada e trabalhada em equipe, o mestre com a função de criar o mundo e os jogadores de darem vida a ele”, Flávio acrescenta.

 

As pesquisas de Iuama tendo jogos narrativos como foco apontam que os RPGs podem estimular o processo de comunicação. Esses jogos envolvem “Obrigatoriamente um grupo de pessoas, e esse grupo de pessoas vai criar em conjunto uma narrativa que não existe de partida”, elucida, “E para que eles construam essa narrativa, precisa existir um processo comunicacional”. 

O psicólogo Alex Fernandes Nunes explica que em uma atividade como o RPG, na qual os participantes precisam construir e desenvolver uma narrativa juntos, a interação entre os jogadores é estimulada de forma semelhante a um esporte praticado em time, mas com uma pequena diferença. “O RPG é um jogo de grupo e cooperativo, isso significa que todos os participantes estão no mesmo time buscando cumprir um objetivo em comum, diferente de jogos competitivos onde um grupo busca vencer o outro”. Essa interação muitas vezes se dá inclusive pelo caminhar das histórias que são construídas durante o jogo. 

 

A gente sempre tenta trabalhar em equipe, então quando algum dos personagens está caindo, o outro vai lá e tenta ajudar”, conta Stéphani Capeloci Visciglia, 24, analista de marketing e membra mais recente do grupo de jogadores.

 

Stéphani começou a frequentar as mesas de RPG há apenas alguns meses, incentivada por seu namorado, Leonardo, mas já demonstra estar apaixonada pelos jogos narrativos. “Eu acho muito legal porque é uma coisa sua, nenhuma história é igual à outra e você constrói junto com os seus amigos”, justifica. Ela conta também que, ao começar a jogar, acabou por expandir um pouco o seu círculo de amizade, já que até então não conhecia todos os membros do grupo. “A primeira vez que eu joguei fiquei meio tímida, mas aí com o tempo fui conhecendo eles, a gente foi conversando e construindo histórias juntos, e hoje a gente se fala bastante, eu me tornei parte integrante da equipe”.

 

Iuama reforça que é nesse aspecto de formação de grupos que o processo comunicacional do RPG se apresenta de forma mais explícita. “As pessoas estão identificando pontos em comum, seja entre elas na vida fora do jogo, porque isso acontece entre jogadores, seja dentro da própria narrativa”. Mesmo Flávio, que já tinha amizade com os primeiros membros do grupo antes de decidirem se reunir para jogar pela primeira vez, percebe os efeitos desse processo. “Como acabamos querendo jogar quase sempre, faz com que fiquemos em contato praticamente todos os dias, isso fortalece muito a amizade e os laços”, comenta. Pedro enxerga isso como uma consequência natural para um grupo de pessoas que compartilham uma mesma forma de lazer. “Você acaba conhecendo melhor as pessoas por estar no mesmo ambiente que elas e interagindo”.

 

Outro elemento que frequentemente jogadores mencionam como forte característica do RPG é o estímulo da imaginação. “Qualquer coisa que nos estimula a criar algo alimenta nossa criatividade”, elucida Nunes. “Eu acho que o RPG me ajudou no sentido de eu me esforçar pra tentar ser mais criativa, lidar com situações inesperadas”, observa Stéphani. 

 

Eu sempre busco fazer os personagens diferentes, sempre variando muito entre eles e trabalhando o máximo da criatividade, pra fazer as aventuras ficarem diversificadas”, Flávio ilustra. O RPG, como explica Nunes, permite ao jogador vestir a máscara que ele quiser, “Nesse jogo podemos ser fadas, magos, vampiros, ou até mesmo um fora-da-lei em um mundo futurístico, dando a chance aos jogadores para expandir sua percepção do mundo e de si mesmos”.

 

Segundo Iuama, as experiências de vida dos jogadores são o que permite o desenvolvimento de uma narrativa por meio do RPG. “Se eu vou criar uma história, uma narrativa, essa ação criativa tem que vir de algum lugar. Esse lugar é a minha história de vida, é o que já aconteceu comigo que de alguma maneira me afetou e eu passei a considerar significativo”, explana. Isso costuma acontecer, de forma consciente ou não, desde a criação das personagens que os jogadores vão interpretar. Stéphani, por exemplo, menciona que sua personagem mais recente é uma espécie de bruxa com habilidades persuasivas. “Como eu faço comunicação, sou publicitária, acho que isso tem um pouco a ver comigo, de você ter o poder do convencimento”, ela explica. “Nos meus personagens eu sempre tento adaptar as minhas características”.

 

Leonardo, por outro lado, procura sempre tentar criar personagens únicos e com características bem diferentes das suas, mas admite que no fundo todos acabam puxando  algum aspecto do criador. “Muitos dos meus personagens são parecidos comigo no fato de que, ao mesmo tempo em que gostam de ajudar os outros, reclamam e estão sempre ranzinzas com tudo”, exemplifica.

 

O que acontece é que os jogadores tendem a criar suas personagens com base em suas próprias características, algumas vezes tentando copiá-las ou adaptá-las, outras tentando evitá-las, “Se eu já tendo a resolver meus problemas conversando durante a minha vida inteira, na hora do jogo eu vou resolver de alguma maneira que na minha vida cotidiana eu não posso, então de repente eu faço um personagem extremamente impulsivo, que não fala, faz”, Iuama elucida. 

 

De acordo com o pesquisador, uma personagem de RPG é um ajustamento do jogador para o ambiente em que ele está, que pode ser uma fantasia medieval, uma ficção científica, entre inúmeras possibilidades. “O personagem é uma maneira do jogador se comportar. Você na universidade não se comporta do mesmo jeito que dentro de casa”, explica.

 

De qualquer forma, esse exercício de se colocar no papel de um personagem a fim de aproximá-lo ou afastá-lo de suas próprias características pode acabar servindo como um meio para o autoconhecimento, segundo Iuama. “A partir do momento em que eu consigo fingir que eu sou alguma coisa diferente do que eu sou no dia a dia, eu estou aprendendo mais sobre quem sou eu de fato”. 

 

Não à toa o RPG tem sido usado eventualmente como ferramenta terapêutica. Pedro conta que jogar o ajuda muito a se livrar do estresse. “Quando jogo RPG é o momento em que eu não sou eu, mas sim o meu personagem, penso só nos problemas dele e no que ele precisa fazer”, exprime. “RPG é mais que um jogo, é uma rota de fuga da realidade”, Leonardo sintetiza. Além disso, Nunes explica que a prática pode ajudar o jogador a lidar com questões que o incomodam no cotidiano. “Ela permite a expressão indireta de elementos psicológicos que normalmente não poderiam ser expressos, o que vai além da pura catarse, pois a catarse é a expressão de conteúdos conscientes que perturbam a pessoa, já o RPG pode trazer a tona conteúdos muito mais profundos, o que o torna terapêutico na verdadeira essência desta palavra”.



Editado por Bruna Blankenship

Link
Notícias Relacionadas »
Comentários »