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15/07/2020 às 15h15min - Atualizada em 15/07/2020 às 15h01min

Farenheit 451 e a Sobremodernidade

A distopia de Ray Bradbury e os estudos de Marc Augé

Bárbara Adelle Dalamaria - Editado por Letícia Agata
Reprodução/Amazon
Em sua obra, o escritor americano, Ray Bradbury (1920-2012), apresenta uma distopia perturbadoramente semelhante aos dias atuais. A história em questão foi pensada, conceituada e publicada, inicialmente como um conto, em 1947. Porém, o conceito tinha tanto a ser explorado, que Bradbury o ampliou e lançou o livro Farenheit 451 em 1953. Logo, a obra foi escrita em um contexto norte-americano, Pós-Segunda Guerra e na época em que se iniciava a Guerra Fria.

Marc Augé (1935) é um etnólogo e antropólogo francês. Em seu texto, Sobremodernidade: do mundo tecnológico de hoje ao desafio essencial do amanhã (2006), ele aborda questões muito pertinentes sobre a sociedade e o futuro da mesma, relacionando o individual com o coletivo. Assim como Lipovetsky, Augé acredita que o prefixo “pós” (depois de), no sentido de pós-modernidade, significa que a sociedade superou a Modernidade. Mas o que ocorre, segundo ele, é uma Modernidade aumentada.

Voltando à Farenheit 451, o livro é uma distopia separada em três arcos, ou capítulos (A Fornalha e a Salamandra, A Peneira e a Areia, Ardente e Claro). Nela, acompanhamos a jornada de um bombeiro chamado Guy Montag, em uma sociedade sobremoderna. Nesse mundo, os bombeiros são encarregados de queimar os livros e punir quem os esconde em suas casas (escondem, pois possuí-los é proibido). O momento de “iluminação” do protagonista da história ocorre logo no início, quando Montag encontra e conversa com sua vizinha, Clarisse McClellan, uma adolescente observadora e curiosa. A partir da visão de mundo dela (e do suposto assassinato dela e de sua família), além do abalo de ter incendiado a casa e matado uma senhora, o protagonista passa a rever os conceitos estabelecidos naquela sociedade e refletir sobre sua própria felicidade e propósitos de vida.

Apesar de o termo sobremodernidade não ser descrito no livro, há vários aspectos facilmente identificáveis nas metáforas (não tão metafóricas, hoje em dia) apresentadas por Bradbury. A primeira delas é a extrema aversão à literatura e a falta de capacidade interpretativa como consequência. Como o Capitão Beatty exemplificou:
 
“Os clássicos reduzidos para compor emissões de um quarto de hora na rádio, cortados de novo para darem extractos de dois minutos de leitura, enfim, arranjados para um resumo de dicionário de dez a doze linhas” (pág. 28).
Ou quando Mildred alegou:
“Os livros não são pessoas. Tu lês e eu olho à minha volta, mas não vejo ninguém!” (pág. 35).

Ou seja, a capacidade imaginativa dos indivíduos foi limitada pelo exagero de imagens com as quais eles eram bombardeados diariamente. Há também a questão das relações interpessoais rasas e o apego ao digital, como Augé pontua: 
 
“A relação com os meios de comunicação pode gerar uma forma de passividade, na medida em que expõe cotidianamente os indivíduos ao espetáculo de uma atualidade efêmera; uma forma de solidão, na medida em que os convida à navegação solitária e na qual toda telecomunicação abstrai a relação com outro.” (pág. 106).

Isso fica evidente no início da história, quando percebemos que Mildred trata personagens de televisão como sua família e utiliza fones de ouvido, que o autor chama de micro-rádios, até na hora de dormir (uma espécie de simbiose orgânica-tecnológica, como a que temos com celulares). Também fica evidente quando Montag se dá conta de que, se a esposa morresse, ele não derramaria uma lágrima, não por maldade, apenas porque ela não passava de uma estranha para ele.

Outro efeito colateral dessa sociedade de excessos é a capacidade adquirida de esquecer rápido. Em determinado momento da trama, Montag questiona Mildred acerca do local em que eles se conheceram, nenhum dos dois é capaz de lembrar. Somente ao final do terceiro arco é que o protagonista lembra que foi na cidade de Chicago. Essa “falta de memória” é causada pela grande variedade de informações que são produzidas diariamente, dando a impressão de que a História se acelera e, ao mesmo tempo, não dando oportunidade de os indivíduos se aprofundarem em nada.

Outro personagem importante na obra é o ex-professor de literatura, Faber. Ele faz o papel de confidente e amigo de Montag. Além de protagonizar várias reflexões durante o segundo arco, como por exemplo:
 
“Os livros são apenas um meio de recolher, de conservar um conjunto de coisas que tememos esquecer. Não há nada de mágico neles, absolutamente nada. A magia apenas repousa no que dizem os livros, na rede dos elementos do universo que eles tecem para nos vestir.” (pág. 41).

Fazendo alusão à profissão de Montag e ao fato de que, não é o papel escrito que importa, mas sim a capacidade crítica de uma pessoa interpretar o mundo em que vive, através do papel escrito. Por fim, cabe falar da sociedade do espetáculo midiatizado, que se configura como outro “efeito colateral” do mundo virtual.

Segundo Marc Augé, o virtual:
“torna incerta a distinção entre o real e a ficção. Os acontecimentos são concebidos e encenados para serem vistos na televisão.” (pág. 113).

Isso fica evidente na perseguição que ocorre no terceiro arco, onde tudo é filmado e narrado como em um filme de ação, com câmeras estrategicamente posicionadas e até um plano B elaborado, caso o “ator principal” estivesse ausente. Farenheit 451 é uma obra que se faz cada vez mais presente nos dias atuais, apesar de ter sido escrita em meados de 1950.

A história de Guy Montag nos faz refletir sobre o quanto estamos “digitalizando” todos os aspectos da vida e das relações com as pessoas. É uma crítica social que, segundo o próprio autor, não tinha a intenção de ser tão ampla em seu conteúdo, nem tão relevante contextualmente. Uma ótima leitura para aqueles que se interessam por etnologia e antropologia, e para aqueles que gostam de uma boa ficção - distópica (mas nem tanto).

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