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26/09/2020 às 19h05min - Atualizada em 26/09/2020 às 18h43min

A desromantização da maternidade no livro Precisamos Falar Sobre o Kevin

Thaís Cordeiro - Editado por Bruna Araújo
Foto: BBC Films
“Pensei comigo: todo mundo nesse restaurante está aliviado de nos ver pelas costas.
Tornei-me uma daquelas pessoas de quem eu sentia pena. E continuo sentindo. Mais que nunca.” 
Precisamos falar sobre o Kevin
 
 
Precisamos Falar Sobre o Kevin (Intrínseca, 2007) é um livro escrito por Lionel Shriver, publicado em 2003, que fala sobre o adolescente Kevin Khatchadourian, que aos 16 anos comete um assassinato em massa na escola onde estudava. A história é contada pelo olhar de Eva, mãe de Kevin, uma mulher livre, independente, bem sucedida, avessa à ideia de dona de casa e sem planos para ter filhos. Com um casamento feliz e estruturado, uma carreira bem estabelecida e uma vida social agitada, repleta de jantares, festas e viagens, nada lhe faltava.
 
Eva não queria ter filhos. O chamado instinto materno nunca aflorou na empresária de quase 40 anos. Iludida pela ideia de solidão e por amor ao marido, que sonhava em ser pai, Eva engravida e se arrepende logo nos primeiros meses. As amigas que eram mães tinham sempre a mesma fala: “Todo desconforto, cansaço e irritação desapareceriam assim que ela pegasse o filho nos braços”. Como mágica. O problema é que a mágica nunca aconteceu. Não no nascimento e nem dezesseis anos depois.
 
 “Só porque você se acostuma com algo não quer dizer que você gosta. Você se acostumou comigo”
 
A coragem da escritora em abordar um tema que, mesmo mais de dez anos após a publicação ainda é rodeado de preconceitos e estigmas chama a atenção pela falta de debate sobre o direito de escolha da mulher sobre ter, ou não, filhos.
 
Apesar de ficção, a história de Eva é um relato perturbador e angustiante sobre um lado da maternidade que não é mostrado nos filmes e comerciais. A mulher que é forçada abrir mão da carreira, planos e estilo de vida, para se adequar ao modelo familiar mais socialmente aceitável, com o qual nunca se quer desejou.
 
Uma montanha-russa, em que no final é prometida uma alegria sublime e eufórica, para algumas, resulta em medo, arrependimento e até loucura. O lado preenchido por vergonha e culpa em que é proibido, até mesmo, se dizer em voz alta.


 
Quando Eva percebe que aos olhos da sociedade (e do marido) ela tinha deixado de ser mulher para se tornar mãe – como se os dois papéis não pudessem coexistir – que o seu poder como um ser independente e com necessidades, desaparece para dar lugar a alguém que cozinha, limpa e cuida de um bebê que não para de chorar, ela se torna cada vez mais melancólica e infeliz. A promessa da família perfeita que um filho traria, não havia se cumprido.
 
A pressão sociocultural que ainda reduz a mulher a reprodutora e cuidadora do lar, põem as mulheres que não desejam ser mães, no papel de seres que desviam do padrão sócio-normativo, diferenciando-as do que se entende, intrinsecamente, como ser mulher.
 
“Existe uma pressão para que várias etapas sejam cumpridas, quando a situação navega fora do curso, isso é visto como errado”, diz a psicóloga e mãe Ana Maria Dallalana. “Uma mulher tem que crescer, se formar, trabalhar, arrumar um marido, casar e ter um filho. Quando ela casa, no momento seguinte já é questionado quando será dado o passo de ter um filho”.


Segundo as estatísticas da última pesquisa do IBGE, em 2010, 14% das mulheres brasileiras não têm planos de engravidar. Na pesquisa anterior, a porcentagem era de 10%. Além disso, o Censo mostra que as mulheres mais instruídas (mais de 7 anos de estudo) estão sendo mães mais tarde, depois dos 30 anos, e a média de filhos por mulher diminuiu drasticamente - de 6,1 para 1,9 nos últimos 50 anos.

A maternidade é um tema com o qual as mulheres precisam lidar desde que ganham a primeira boneca. É ensinado desejar ser mãe. O que não faz parte da pauta, são as dores que a maternidade acarreta, principalmente para as que não escolheram esse papel. “É muito difícil lidar com o inesperado, com algo que você não estava planejando, e ter que lidar com aquilo a qualquer custo. Principalmente nos primeiros meses de vida, aquela mulher existe para o bebê. Ter que abdicar da própria vida, em prol de outro ser que depende exclusivamente de você, para quem não deseja, deve ser extremamente dolorido. Falar sobre os problemas da maternidade pode trazer à tona a possibilidade de resolvê-los” finaliza a psicóloga.
 
Eva é uma personagem, mas também é um retrato fiel dos sentimentos de medo, vergonha e culpa que ocorrem com todas as mulheres em algum momento da vida. Mulheres que quando se tornam mães, sofrem e sangram por seus filhos. Mulheres que se anulam e se silenciam por amor.
 
 Referências

Censo. “Mulheres mais escolarizadas são mães mais tarde”. Disponível em: <https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html?view=noticia&id=1&idnoticia=1717&busca=1&t=sis-2010-mulheres-mais-escolarizadas-sao-maes-tarde-tem-menos-filhos> Acessado em 24 de Setembro de 2020.

Wickbold. “Mulheres Que Não Querem Ser Mães” Disponível em: <https://www.wickbold.com.br/mulheres-que-nao-querem-ser-maes/> Acessado em 24 de Setembro de 2020

Artigo. “Dinâmica familiar e violência a partir da analise do filme Precisamos Falar Sobre o Kevin” Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-82202014000200004 > Acessado em 24 de Setembro de 2020.

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