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01/10/2020 às 19h57min - Atualizada em 01/10/2020 às 19h53min

As últimas testemunhas: na guerra, as crianças só amam os sonhos da vida de paz

“Feche os olhos, filhinho... não olhe...” (As últimas testemunhas, Svetlana Aleksiévitch)

Letícia Franck - Editado por Bruna Araújo
Divulgação
Em 22 de junho de 1941, a Alemanha invadiu a União Soviética e deu início a chamada Grande Guerra Patriótica (1941-1945). 40 anos depois, a Nobel de Literatura (2015) Svetlana Aleksiévitch publicou sobre aquelas que seriam chamadas de “as últimas testemunhas”. Na época, crianças, entre 2 e 14 anos. E é sobre esse livro tão forte que vamos falar, trazendo como ponto de referência o 12 de outubro. Existem assuntos que, embora ácidos, precisam ser engolidos para que não nos deixemos esquecer do gosto da guerra.  
 
Sou uma grande fã da literatura, mas poucos autores conseguem ter obras que me agradem de forma unânime - e cada vez mais -. Svetlana é uma dessas mulheres que se escrever uma bula terei enorme satisfação em ler. A escrita da alma humana e os relatos secos da guerra passam um tom mais acinzentado às suas obras. Não são livros bonitos. Mas são livros incríveis. Não se pode dizer -ou pode, você que sabe- que foi um dos melhores livros da vida, porque é triste demais. Aliás, todos são. A temática é pesadíssima, afinal, trata sobre guerras e desastres, mas tudo é tão poético e humano que você quer continuar tendo aqueles socos no estômago porque no final das contas, é difícil parar no ponto final. Svetlana provoca eternas reticências em seus leitores, vão por mim.
 
Mas agora chega de falar da autora e vamos falar da obra: “As últimas testemunhas”, publicado pela primeira vez em 1985, só chegou ao Brasil em 2018 e relata entrevistas de uma intensidade emocional inigualável, obtidas através de vozes que hoje adultos, viveram e sentiram os horrores e devastações da Bielorrússia na Segunda Guerra. A fome, o luto, a separação, a falta de escolhas de crianças que não tiveram infância, mas ânsias. Ansiavam comida, vida, brinquedos, educação, família. Ansiavam algo que a guerra não foi capaz de conceder. Não existe lado bom na guerra, nem vencer. E alguns entrevistados deixam isso muito claro, em diversas partes do livro.
 
São relatos compilados em centenas de páginas em um formato bem confortável de ser lido, no sentido de que, se você preferir, pode ir lendo um relato por dia e refletir sobre nas próximas horas. Foi o que acabei fazendo diversas vezes, não tinha emocional para tanto. E isso é bem interessante que se deixe claro, assim como é válido apontar que em todos os monólogos a escritora teve o trabalho cuidadoso de conduzir com perguntas em níveis de conversação mesmo, o que foi uma sacada genial.
 
A maioria dos relatos são por uma certa perspectiva vagos, já que muitas dessas pessoas eram crianças de 2 anos e lembram de pouquíssimas coisas. Um ponto que se repete bastante entre as respostas são cheiros: de uma árvore da casa, da comida da avó, do cabelo do pai... Cenas comoventes que são relembradas com muita dor, como por exemplo quando elas precisam comer o animal de estimação que tanto eram apegadas por causa da fome ou arrancar lascas do fogão e pôr na boca. Abraçar mulheres que tinham “cheiro de mãe” ou “aparência de mãe” nos orfanatos também era algo que elas faziam com uma certa frequência, já que todo esse afastamento provocado pela guerra era feito prematuramente. Existiam aquelas crianças que também não podiam fechar os olhos frente à execução dos pais e irmãos. E, caso chorassem, eram fuziladas da mesma forma.
 
Há de se contar muito mais, no entanto, quero que você encare esse livro como eu encarei: uma surpresa dolorida, mas necessária. Leia “As últimas testemunhas”, mas prepare o seu coração. Os relatos que você vai encontrar nessa obra não vão ser esquecidos, assim como não foram para essas crianças.
 
Se é terrível lembrar, mais terrível ainda é esquecer. A guerra não pode nunca ser esquecida.
 
Quem chora não mama, morre: a guerra não acabou, só pararam de falar sobre ela  
 
“Talvez ele tenha se transformado numa outra pessoa aquele dia, vai vendo o barato. Dia das Crianças” (Racionais MC’s)

12 de outubro, infelizmente, não vai ser comemorado por centenas de crianças. Notícias ao redor do mundo comprovam que a guerra ainda não acabou. Só não enxerga quem não liga a TV ou não presta atenção na briga da casa ao lado. A guerra infantil não precisa empunhar lanças. É tudo muito desenhado num cenário bem próximo de ser uma obra-prima da dor.
 
Em 2017, segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), 12 mil crianças foram mortas ou feridas em guerras ou disputas. Mais especificamente cerca de 24 mil violações foram registradas em 20 conflitos enquanto você levava seu filho para brincar no parquinho ou tomar sorvete no domingo à tarde. O relatório da “ONG Save the Children” reúne dados da ONU e aponta que o número é o maior registrado em 20 anos, segundo o R7 Internacional. Ao todo, 420 milhões de crianças viviam em áreas de conflito. Isso te incomoda ou é uma realidade muito distante para seus olhos viciados em olhar somente a si mesmo?
 
Crianças não escolhem a guerra. Mas ela não poupa ninguém, nem mesmo os pequenos. E ninguém precisa estar em países com altas taxas de ataques como Somália ou Síria, por exemplo. Saia do seu mundo colorido e olhe a janela: tem criança morrendo baleada por causa da cor da pele. Tem menina de 10 anos sofrendo violência sexual e sendo julgada e apontada por uma sociedade doente. Isso não é também uma guerra? Onde está a paz para essas crianças?
 
“Ah, mas nem se compara ao que aconteceu lá no livro da Svetlana”. Mas estamos nos encaminhando para isso, né, meus amigos? Fica aqui a reflexão e a certeza de que para bom entendedor uma frase em aberto basta.
 
Ainda o relatório “Stop the War on Children” registrou os dez piores países para crianças, sendo eles: Afeganistão, Iêmen, Iraque, Mali, Nigéria, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Somália, Sudão do Sul e Síria. Poderia ter o Brasil? Sinceramente, com esse governo, a guerra interna começou na posse porque para sobreviver tem que estar em constante meditação. Mas é aquela coisa, quando não é no seu corpo a ferida dói aos olhos mas a pele não sente.
 
Existe muita magia na data? Claro que sim. Mas existe muita guerra e conflito no tráfico também. Talvez seja nossa principal batalha aqui no Brasil. Infelizmente nossas crianças continuam sendo recrutadas. Nem todos poderão abrir presentes e comer doces. Tampouco ganhar mais um dia de vida. Enquanto você estava lendo isso, mais uma criança morreu. Isso ainda parece distante?
 
12 de outubro.

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