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04/12/2020 às 11h13min - Atualizada em 04/12/2020 às 08h41min

Dores, cicatrizes e impunidades

A violência sexual e seus desdobramentos sociais: pesadelo e recomeço

Sheyla Ferraz - Editado por Gustavo Henrique Araújo
Reprodução: site lousa nunca +
No Brasil, atualmente ocorrem mais de 180 estupros por dia, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). As estatísticas apontam recorde no aumento do crime; a maioria das vítimas são adolescentes na faixa etária próxima aos 13 anos e, além disso, 50,9% das mulheres estupradas são negras.

Recentemente o país acompanhou a polêmica e a revolta no caso de Mariana Ferrer, a influenciadora catarinense que foi vítima de estupro em 15 de dezembro de 2018. A decisão judicial perante o crime chocou o Brasil no mês de outubro deste ano após Mariana fazer uma declaração sobre o ocorrido em sua rede social, gerando indignação em milhares de pessoas, as quais levantaram a hashtag #juticapormariferrer.

O agressor, André de Camargo Aranha, foi absolvido do crime, pois segundo o juiz "não havia provas contundentes e as versões foram controvertidas". O estupro foi considerado culposo.

Inspirado nesse caso, esta reportagem conta o trauma vivido por Lorena Morais. Ela relata como foi passar pela dura e traumática experiência de ter sido estuprada aos 15 anos de idade.

Moradora da cidade de Ceilândia, negra, Lorena Morais foi uma adolescente que precisou aprender a lutar como gente grande desde muito cedo, pois sua realidade de vida a obrigava a assumir grandes responsabilidades precocemente. Para ajudar sua mãe e seus irmãos, ela trabalhou por muitos anos como empregada doméstica e em empresas, no setor de serviços gerais. 

Todos os dias ela saía para trabalhar por volta das cinco horas da manhã, sua mãe, dona Abadia, ficava do portão seguindo a filha com o olhar até que a perdesse de vista. Era um gesto de cuidado diário com a filha. Certa vez, porém, Lorena saiu mais cedo, às quatro e meia da manhã e, portanto, nesse dia sua mãe não conseguiu acompanhá-la como de costume.

Há mais ou menos 15 metros de sua casa, ela foi surpreendida por um homem que vinha logo atrás mandando que ela parasse. "No começo, eu pensei que era brincadeira... Aí ele disse: ou você para, ou você morre”, relata a vítima.

Um cenário de horror tomou forma: o agressor a levou para um beco, duas ruas antes de sua casa, a fez refém dentro de um fusca e a encapuzou.
O que Lorena não imaginava, no entanto, era que dentro do carro havia mais dois agressores, os quais a levaram para um local distante, chegando, portanto, próximo a cidade da Estrutural. O crime foi cometido ali mesmo.

Neste momento, sua voz começa a ficar trêmula e continuar o relato foi ficando mais difícil, mas ela escolheu continuar contando a triste história.
           
Enquanto sofria o abuso, ela conta: “Eu pensava: se minha mãe tivesse me visto do portão, talvez eu não estivesse aqui”. A visão ficou turva, escureceu e Lorena desmaiou; não viu mais nada.
 

“Eu pensava só em Deus e na minha mãe”.


Depois de estuprarem Lorena, os agressores a abandonam no local do crime e ela, machucada e aos prantos, grita por socorro. Naquele momento, passa próximo ao lugar um carroceiro, que a leva para casa. Dona Abadia, ao ver a filha chegar em casa dentro de uma carroça, desmaia na hora.

A adolescente foi levada ao hospital e realizou o exame de corpo de delito pelo Instituto Médico Legal (IML), a vítima conta que precisou levar de cinco a seis pontos na parte íntima
 devido a tamanha violência. Ao fazer todos os exames que comprovassem a violação da sua integridade física, Lorena descobre que engravidou.
 
"Hoje eu carrego comigo essa cicatriz, ela não apaga. Pra mim é muito difícil".

O caso foi levado à justiça, a qual deu a ela o direito de retirar a criança. Os policias não conseguiram identificar dois dos criminosos e o outro também ficou solto. Após um ano e meio do crime, faleceu próximo a casa de Lorena.
 
“Aquilo que você guardou tanto tempo, você vê acabar assim, em minutos... Mas a minha vida Deus poupou, então pra mim, isso é tudo”.

Mesmo com a trajetória marcada por dores, Lorena consegue seguir adiante e construir sua família. Hoje ela é mãe, esposa e avó, e se considera uma pessoa feliz.

A psicóloga Marília Rocha descreve o estado emocional de mulheres que passam por esse tipo de crime, ela diz: “As mulheres que são vítimas de violência sexual podem vivenciar quadros severos de sofrimento psíquico. Muitas apresentam fragilidade, angústia, medo e até mesmo culpa”.

Vítimas que passam por essa situação tendem a ficar mais retraídas e muitas delas ficam com dificuldades para se relacionarem novamente. Os flashs de lembranças vêm a todo o momento, até mesmo pequenos gestos podem remeter à situação de crueldade vivida pela vítima. “Fiquei três anos com medo de casar, de sofrer, de ser igual”, declara Lorena Morais.  
                                                
                                                     (Fonte: uol.com.br.)

A especialista diz, ainda, ser bastante comum os sentimentos de vulnerabilidade, raiva e vergonha. Parte dessas vítimas passam por um processo emocional e mental extremamente conflitante, pois temem o julgamento de familiares e amigos ao expor o ocorrido. Quando a violência vem de alguém próximo, o medo de contar se torna ainda maior.
 
A Psicologia dá alternativas para o acolhimento e o tratamento para esses tipos de situações. “A psicoteria em grupo é uma opção de tratamento complementar que possibilita a troca de vivências, permitindo que essas mulheres verbalizem suas experiências", reitera a psicóloga.

O compartilhamento de casos semelhantes auxilia a mulher a recomeçar sua história a partir de uma nova força e de um novo olhar para o dano sofrido por ela. As mulheres que passam por isso carregam dentro de si desafios de superação ímpares, por isso, dar voz ao que passaram gera impacto e conscientização social.

Existem outras Lorenas que foram covardemente feridas, mas conseguiram se reerguer ao traspassarem o mal de quem desprezou o seu valor.


Nota: O nome real da mulher entrevistada foi trocado para proteger a privacidade dela.

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