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05/02/2021 às 07h02min - Atualizada em 05/02/2021 às 06h36min

A guerra contra a mutilação genital feminina

No dia 6 de fevereiro a Organização das Nações Unidas (ONU) celebra o combate e a erradicação a essa prática realizada em meninas ainda na infância

Sara Moreira - Editado por Gustavo Henrique Araújo
Foto: Siegfried Modola/Reprodução: Reuters

Sempre me encontro nostálgica quando chega o dia 6 de fevereiro. Essa foi a data escolhida pela Organização das Nações Unidas (ONU) para combater e erradicar a mutilação genital feminina. Sinto tanto pelas milhares de garotas que passam por isso a cada dia; infelizmente eu, Asha Ismail, faço parte da estatística das mulheres que passaram por esse trauma, ainda na infância.
 
Lembro-me como se fosse hoje, o sol ainda não tinha nascido no Quênia, cortaram meu cabelo e todas as mulheres da aldeia estavam cantando. Minha mãe e todas as outras mulheres da minha família estavam felizes, eu estava feliz. Receberia vestidos novos, e poderia fazer parte do grupo das mais velhas.
 
Seguimos para o bosque próximo à floresta, com cerca de 300 mulheres e meninas cantando animadamente. Eu não fazia ideia do que me aguardava. Quando chegamos ao local marcado, fui surpreendida por minha avó e outras mulheres agarrando e segurando minhas pernas, minha mãe ficou por trás, segurando meus braços.
 
Ouvi outras meninas gritarem e senti muito medo por não saber o que estava acontecendo. Chorei em desespero. As mais velhas ainda cantavam, mas eu já não estava mais feliz. Olhei para minha mãe e pedi para ir para casa, então, o primeiro corte foi feito. Eu tinha apenas cinco anos. Só então chorei de dor, uma dor indescritível que só quem passa por isso sabe a intensidade.
 
Havia muito sangue e não sei dizer quanto tempo aquilo durou. No processo, quatro meninas que foram mutiladas além de mim faleceram. Todos me diziam para ficar feliz, mas como eu poderia estar feliz se aquilo me causou tanta dor e a morte de outras quatro. Perguntei à minha avó por que aquelas meninas tinham partido, e ela me respondeu dizendo que Deus quis que elas morressem. Aquilo nunca me tranquilizou.

 

 Siegfried Modola/Reuters

Uma das coisas que não vou esquecer foi quando tentei urinar pela primeira vez depois do processo: a primeira gota foi horrível. E demorou... porque saía gota a gota. Muitas vezes, eu levantava, vestia-me e ia brincar, porque não acabava. Voltei a urinar na cama. A relação com minha mãe ficou horrível, eu cheguei até a odiá-la, associando ela à minha dor. Só consegui entendê-la quando fiquei adulta.

Compreendi que ela só estava cumprindo um dever, algo que esperavam dela. É uma alegria poder realizar o ritual, em que todas as mulheres da comunidade participam e que todas as meninas esperam. Não sabem o que as espera, mas esperam uma cerimônia em que usarão vestidos novos, e serão incluídas como parte da sociedade secreta das mulheres.

Mamãe só estava fazendo o bem para mim. E é isso o que todas querem, porque nenhuma mãe faria mal à filha. Foi isso o que me fez ter a certeza de que nunca permitiria que minhas futuras filhas ou netas passassem por isso. Eu vi muitas meninas e mulheres falecerem por conta dessa prática. Elas morrem de hemorragia ainda na cerimônia, de infecções por compartilhamento de lâminas e, já adultas, durante o parto de seus filhos.
 
Casei-me quando completei 20 anos, com um senhor que eu nunca tinha visto, muitos anos mais velho do que eu. Chegou a gravidez. Todo dia eu odiava ser mulher, rejeitava o que tinha me acontecido. A repulsa era tão forte que eu só tinha um desejo: que o feto que carregava no ventre fosse um menino. Eu não queria uma menina; eles são livres, elas não.
 
No dia do parto, tiraram o bebê e quando eu o peguei meu mundo caiu. Era uma menina. Com ela nos braços, comecei a chorar; eu a olhava e pensava em tudo o que a aguardava. Questionei-me sobre o por quê. Por que esse castigo? Por que tinha que ser uma menina? Eu não chorei por causa da dor, mas porque era uma menina. Naquele dia, prometi protegê-la de todos os perigos e castigos, mesmo que custasse a minha vida.
 
Alguns anos depois, pedi o divórcio e, após muitas discussões, ele aceitou. Fui embora do Quênia e decidi estudar em Madri, na Espanha. A mutilação anda junto com o casamento precoce. Assim que uma menina é circuncidada, é comum que ela seja dada a um homem bem idoso, e isso acontece aos 14, 15 ou 16 anos.

Com isso, elas largam os estudos, tornando muito difícil para as famílias combaterem a pobreza. É por isto que a data 6 de fevereiro é um dia que me deixa emocionada, porque ele promove uma luta que vai beneficiar milhares de meninas e mulheres e, portanto, todos a sua volta.
 
Hoje, sou avó de uma linda menina chamada Maisha, que significa “vida” em suaíli; como a sua mãe Hayat, que é “vida” em árabe. Ela quis dar à filha um nome com o mesmo significado que o dela, porque elas pertencem as gerações salvas. Maisha nunca saberá o que é a mutilação genital, porque sua mãe não passou por isso. Para a menina, isso será uma longínqua história.
 
É isso o que eu quero para todas as meninas, e vamos conseguir com essa luta. Hoje sou ativista e fundadora da ONG Save a Girl, Save a Generation (Salve uma Garota, Salve uma Geração). A minha decisão afetou a minha filha, a minha neta e assim por diante. Por mais que seja uma questão cultural de identidade étnica e de gênero, nós ganhamos uma batalha. Ainda precisamos ganhar a guerra, mas vamos conseguir.

 


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