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12/02/2021 às 17h04min - Atualizada em 12/02/2021 às 16h29min

"Olhos d'água": sentimentos deixados por Conceição Evaristo

"Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum!"

Suyany Nogueira - Editado por Gustavo Henrique Araújo
Foto: Reprodução/Literafro
Maria Conceição Evaristo nasceu em 1946 e morou por um tempo em uma favela de Belo Horizonte, até a década de 1970, quando foi para o Rio de Janeiro. Ela é graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); foi professora e é Mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e Doutora em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense (UFF). Evaristo estreou na literatura em 1990, quando começou a publicar seus contos e crônicas no "Cadernos Negros", que reúne escritores e poetas afro-brasileiros.

O livro "Olhos d'água" foi publicado em 2013 e, em 2015, conquistou o Prêmio Jabuti, na categoria Contos e Crônicas. Nele, a autora nos mostra através de 15 contos a dura realidade envolvendo a pobreza e a violência urbana que impacta a vida da população mais vulnerável da sociedade, em sua maioria pessoas negras e pobres, especialmente mulheres, que moram nas periferias e favelas. Evaristo transmite, por meio de uma linguagem poética e profunda, assuntos relacionados ao racismo, ao abandono e à violência, mas também à autodescoberta, ao amor, entre outras pautas muito importantes para todos nós, provocando no leitor uma série de reflexões sociais necessárias para o nosso crescimento humano.

Larissa Simonetti, produtora de conteúdo literário no Instagram (@projetolivroslivres) conta que é difícil ler e ter conhecimento sobre o que não faz parte da nossa realidade, mas que é importante e necessário. Ela afirma que todos os contos que compõem o livro “têm a sua realidade poética que os tornam maravilhosos por igual” e reconhece a importância do livro: “São 15 histórias fictícias que carregam o peso do dia a dia real vivido por tantos brasileiros."

Ébony Souza, que também é produtora de conteúdo (@leituras.dabonnie), relata que leu "Olhos d’água" em paralelo com "Pequeno manual antirracista", da autora Djamila Ribeiro, e enquanto aprendia sobre o racismo em um livro, lia sobre as suas consequências no outro. Ela declara que um dos contos que mais a impactou foi "Duzu-Querença": “Ver uma criança entrando na prostituição por saber que talvez não consiga algo melhor na vida mexeu muito comigo. Precisei de uma pausa para engolir isso, porque é uma temática sensível para mim”. Ébony acredita que, a partir dessa leitura, as pessoas que nunca passaram por uma situação envolvendo o racismo aprenderão muito com a autora, enquanto aqueles que já passaram não se sentirão sozinhos.

Em muitos momentos, é possível relembrar situações. Relembrar pessoas. Relembrar vidas que se tornam alvos diariamente e que, muitas vezes, são perdidas. Embora o livro seja de ficção, o retrato e a ambientação apresentadas nos fazem lembrar nitidamente da realidade em que vivemos, na qual pessoas negras são alvos nítidos de discriminação, desrespeito, violência e, até mesmo, assassinatos.

Racismo enraizado e suas consequências

Participante ativa de movimentos de valorização da cultura negra e diante de suas experiências, Conceição Evaristo possui propriedade para falar sobre as narrativas que escreve. Em entrevista realizada pela TV Aparecida, ela conta que vivenciou durante a escola uma experiência cruel e concreta com o racismo e que era possível perceber a diferença entre os pobres e os ricos da época. Ela detalha como acontecia: "A escola era de dois andares. Na parte de cima ficavam as classes com as crianças que recebiam medalhas, as que não repetiam de série e 'coincidentemente' lá estavam os meninos brancos. Quando tinha a coroação de Nossa Senhora, eram essas as crianças que se vestiam de anjinho e colocavam a coroa. Na parte de baixo, que era o porão da escola, inclusive a sala era mais abafada, ficavam crianças semelhantes a mim e aos meus irmãos."

Na profundidade que compõe os contos de "Olhos d’água", é possível notar que o racismo se manifesta em vários locais e as suas consequências são irreversíveis, podendo resultar até mesmo em mortes. De acordo com o Atlas da Violência, um levantamento de dados realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, vinculado ao Ministério da Economia (IPEA), mostrou que em 2018 cerca de 75,7% das vítimas de homicídios eram pessoas negras. Em relação ao feminicídio, a realidade se repete, 68% do total de mulheres assassinadas no Brasil eram negras.

A partir disso, surge a importância de haver debates sobre práticas antirracistas a fim de proporcionar maiores oportunidades e respeito para esse grupo social. Djamila Ribeiro cita em seu livro "Pequeno manual antirracista" um trecho escrito por Silvio Almeida, autor do livro "Racismo estrutural":

 

“A mudança da sociedade não se faz apenas por denúncias ou com repúdio moral do racismo: depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas.”

As práticas antirracistas são, sem dúvidas, refletidas através das nossas ações, posicionamentos, consumo e, especialmente, na educação que damos e conquistamos com o tempo. Djamila diz que “o antirracismo é uma luta de todas e todos”. Acredito (e todos nós precisamos) que é possível transformarmos os olhos d’água que choram a dor da perda e da injustiça, em um oceano de esperança e de luta vencida por mais respeito e amor.  

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