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02/06/2019 às 20h59min - Atualizada em 02/06/2019 às 20h59min

Anonimato sob vigilância

Socorro Moura - Editado por Millena Brito
Você não está só... Imagem: Pinterest

Esse trecho me veio a mente: “o que você faz quando, ninguém te vê fazendo, ou o que você queria fazer se ninguém pudesse te ver”. Em uma rápida interpretação dessa parte da composição 'Quatro vezes você', do Capital Inicial, depreende-se que pessoas possuem atitudes diferentes, sem máscaras quando sabem que ninguém está observando. Por um súbito momento, livra-se das convenções sociais e externas o que normalmente evitaríamos em nome da mais harmoniosa convivência. Ali, quando se acredita que ninguém vê, nos cobrimos da frágil camada da privacidade.

 Talvez em um longínquo tempo, em que ninguém possuía o “dom” de ser autor de produções audiovisuais, ou não dispusesse de meios massivos e rápidos de acesso e produção de informações diversas, o fator privacidade poderia ser invocado de maneira mais contundente. Aliás, o que nem ganha tanta repercussão, na verdade, nem precisaria de tanto esforço, logo cairia no esquecimento. Só que ultimamente, isso não pode, pelo menos não deve, ser entendido assim. Diante do poder conferido pelo celular, por exemplo, o usuário comum não se intimida quando presume que algum assunto pode render uma boa audiência. Mesmo o protagonista do assunto não sabendo que está sendo registrado.

Recentemente, em um episódio divulgado nas redes sociais, um apresentador da Band News, em um momento de flagrante descontração, comenta, sobre o quanto a inesperada cobertura de uma morte recente de uma celebridade tinha “ferrado com a vida dele”. Essas foram as palavras. Além disso, faz comentários sobre mulheres, que os mais sensíveis ficariam um pouco contrariados de sua postura pessoal. Eu fiquei. Facilmente, as mensagens recebidas pelo público iriam se sobrepor a um detalhe primário, mas também relevante: a privacidade do jornalista. Não só a dele, mas a sua, e a minha também. Assim, não quero entrar no mérito do conteúdo. Admito que não gostei, porém reconheço que ele por si só, já cega a muitos sobre a necessidade da discussão sobre a importância de preceitos básicos serem respeitados.

Não creio que essa vigília ao espaço de cada um e uma seguinte exposição seja algo aceitável, nem mesmo sob o pretexto de separar quem é do bem ou não é. Na literatura ficcional, é o que Michel Laub, em seu livro “O tribunal da quinta-feira” conta através da trajetória de José Victor, 43 anos, publicitário que teve suas conversas compartilhadas pela ex-esposa, após ela descobrir por acaso troca de e-mails entre ele e o amigo de longa data. Lá havia conversas com conteúdo bem íntimo, muitas vezes permeadas de termos chulos, mas que pertenciam a privacidade de quem estava nas conversas. O tribunal se instaurou após a divulgação, e quem não conhecia a vida pregressa dos envolvidos, colocou o dedo sob forma de linchamento em uma história do qual só sabiam a metade - a que interessava a quem divulgou.

O que eu faço quando ninguém me vê, pertence só a mim. Poderia entrar na proposta da música, porém não consigo dissociar da neurose que alguém pode estar me vigiando – e na pior das hipóteses, filmando. A cultura dos registros e likes por flagras é um sintoma do qual nos assustamos, apontamos, mas não fazemos a lição de casa. A etiqueta virtual que eu quero está longe de ser alcançada, mas persisto, ou melhor, me previno.

 


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