Lab Dicas Jornalismo Publicidade 728x90
16/07/2021 às 21h50min - Atualizada em 16/07/2021 às 21h27min

Crônica: o nosso ciclo não precisa ter um fim

Alguns ciclos merecem ser mantidos por mais tempo e você é um deles

Raphaela Vitor - Editado por Andrieli Torres
Foto: Reprodução/Pezibear por Pixabay
Nunca pensei que a vida pudesse se resumir em começos e términos de ciclos, por exemplo, quando era mais nova minha mãe me disse que começaria a frequentar uma pré - escolinha, lembro-me de não conseguir conter a animação e foi assim que se deu início ao meu primeiro ciclo.

Durante aqueles dois anos durante a semana, minhas tardes eram preenchidas por pinturas de dedos, estudos do alfabeto e voltar de mão dadas para casa com o senhor, e durante nossa caminhada eu lhe contava sobre o meu miniciclo do dia, qual o desenho pintado da vez, que nova letra aprendi e quais brincadeiras mais gostei.

Quando atingi idade o suficiente para frequentar uma escola de verdade, as pinturas foram substituídas por equações de matemática, as letras por introdução a gramática e as brincadeiras por aulas de ciências, porém, nosso ritual continuava o mesmo. Era incrível como você nunca ligava se estava sol demais ou que os céus pareciam despencar de tanta chuva, sempre ia me buscar, éramos um ciclo sem fim eminente.

Inícios tendiam a me assustar, se lembra de quando minha mãe me matriculou no balé aos seis anos? Ao entrar naquela sala espelhada e cheia de rostos desconhecidos quase corri de medo, mas aí, ela sussurrou ao meu ouvido “Seu avô vai adorar saber como foi o seu primeiro dia como bailarina”, essa frase foi o suficiente para que eu estufasse o peito e colocar uma sapatilha em frente a outra para começar aquele novo ciclo.

Não importava quantos ciclos se iniciasse, havia uma voz me assegurando que o senhor sempre estaria lá para me acompanhar e o seu sonho era era um dia me buscar na faculdade para que eu pudesse lhe falar sobre as coisas de “gente inteligente”, nomenclatura que você dava a qualquer um com diploma, era o meu sonho também.

Infelizmente nunca conseguimos realizá-lo, porque nossos ciclos estavam contados, e assim, numa segunda feira você me buscava na escola e numa terça-feira eu o olhava parado entre quatro extremidades de madeira. Não consegui derramar uma lágrima se quer porque não conseguia imaginar que aquele seria o fim do nosso ciclo, mas foi. O seu durou 87 anos e durante esse tempo sei que teve muitos começos e fins, recheados de altos e baixos e de acordo com você mesmo, pouquíssimos arrependimentos. Porque não importa o quanto queremos romantizar o ato de viver, no fim, tudo recaí sobre o início ou final de algo.

Demorei para aceitar sua morte vô. Por pura ingenuidade infantil, a morte nunca foi uma questão que se passasse pela minha mente de criança, e essa foi uma das melhores dádivas da minha vida. Por este motivo, pude desfrutar seu entusiasmo contagiante todas as vezes que contava sobre as minhas aventuras durante meus miniciclos diários, pude responder todas as suas dúvidas sobre equações numéricas sem me preocupar se aquilo teria de fato um fim.

E agora oito anos depois, com um diploma em mãos e tentando fazer coisas de “gente inteligente”, vim te atualizar sobre o meu dia, sei que não faço isso há um tempo, mas estou decidida a mudar esse fato e hoje decidi a dar início a um novo ciclo entre nós, então aí vai.

Acabei de ler aquele livro da Agatha Christie e advinha? O assassino era a mulher do cara!, decidi ler agora o Morro dos Ventos Uivantes, também consegui pôr um fim naquele projeto que estava me deixando louca há meses, finalmente o cliente aprovou a arte, minha mãe descobriu que fiz mais uma tatuagem (ela surtou, mas já está bem), achei que gostaria de saber que rompi com o Beto, sempre tive a impressão de que você não iria muito com a fuça dele, o senhor acredita que ele não gosta de Alcione? Inaceitável, e por último me apliquei para uma vaga de mestrado em comunicação na França, sabe o lugar daquela torre chique que víamos nos filmes, o resultado sai em um mês, estou nervosa, mas vou deixar para sofrer mais tarde. Bom vô por hoje é só, mas te prometo que amanhã volto a te escrever.

Com amor, da sua neta Cecília!

Link
Tags »
Notícias Relacionadas »
Comentários »