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15/10/2021 às 10h30min - Atualizada em 15/10/2021 às 10h18min

Quando a solidão ameaça a nossa existência

Solidão e desamparo dos idosos representado em “Até que a culpa nos separe” de Liane Moriarty

Hannah Carvalho - Editado por Andrieli Torres
Foto: Blog Acidamente Sensível
*A matéria pode conter spoiler do livro

Pensar na velhice pode deixar muitas pessoas ansiosas, com medo de não terem vivido, viajado, se apaixonado, trabalhado e constituído vínculos afetivos o suficiente. O medo do futuro é capaz de nos aprisionar e fazermos nos fechar para o mundo. Assim como o medo, o luto e o desejo em ter a vida sob controle, também nos paralisa e nos afasta da realidade, das pessoas queridas. No terceiro romance escrito pela autora australiana Liane Moriarty, “Até que a culpa nos separe”, um personagem secundário da trama representa bem o afastamento de si para o mundo a sua volta em razão do medo e do luto.

Harry é um idoso que mora sozinho em uma vizinhança em que residem casais heterossexuais mais jovens, entre eles, um dos protagonistas, Erika e Oliver, dois personagens mais introvertidos e meticulosos. Oliver é o único a ter uma conversa amigável com Harry, que costuma ser hostil com todos que tentam se aproximar dele. O que ninguém entende, até quase o desfecho da narrativa, são as razões para que o idoso seja tão agressivo com outras pessoas. Harry perdera seu filho, Jamie, e sua esposa, Elizabeth, em uma feirinha de diversões. Somente os dois quiseram se divertir no brinquedo chamado “A Aranha”, de oito pernas compridas e um carrinho na ponta de cada uma delas. Mas na terceira vez da mãe e do filho se entreterem no mesmo brinquedo uma das peças de rolamento não funcionou corretamente e um carrinho se soltou.

Além dos familiares de Harry, mais seis pessoas vieram a óbito. A idade dos personagens não foi especificada pela autora, mas pela descrição Jamie era ainda criança, o que causava mais dor em Harry pela sua perda. Ele continuou morando na mesma casa, sentindo a falta dos seus entes queridos e revivendo, com muita dor, cada lembrança feliz com eles naquele ambiente. O quarto de Jamie nunca foi desfeito, tudo estava exatamente como a última vez que ele deixou, há quase 50 anos. Harry faleceu em solitude nesta mesma casa, depois de tropeçar do segundo degrau da escada em que estava descendo. Ficou, no mínimo, dois meses esquecido no chão do próprio lar, sem vida, até que um dos vizinhos, que ele não tinha afeição, encontrara seu corpo depois de perceber sua ausência.

“Mas Harry estava abandonado naquela casa, assim como estava abandonado naquele corpo.” (p. 437)

Solitude se agrava na pandemia

Quantas notícias lemos diariamente de idosos que, assim como Harry, são esquecidos e desamparados por seus familiares e conhecidos? Quantos deles morrem sozinhos, sem ter presenciado um gesto de carinho durante anos? Sem sentir um abraço, receber um beijo carinhoso no rosto, um acalento no coração?

Em março do ano passado, estimou-se que haviam cerca de 4,3 milhões de idosos vivendo sozinhos no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A pandemia da Covid-19 dificultou a vida dessa população, já que as medidas de distanciamento social e segurança contra o vírus afastava a terceira idade ainda mais do resto da sociedade. Mesmo aqueles que tinham contato frequente com os parentes tiveram que diminuir ou erradicar as visitas para sua própria proteção, visto que são as pessoas consideradas do maior grupo de risco para contrair a doença e vir a óbito. Somente agora com a disseminação da vacina contra o coronavírus que os idosos puderam voltar a reencontrar os familiares e amigos com mais segurança de suas residências, seguindo a risca os protocolos de proteção. Muitos deles, com a saúde mental extremamente afetada.

Maurício Alves, de 65 anos, sente-se cada vez mais deprimido e solitário. Mora sozinho na mesma casa que cresceu junto ao seus pais, já falecidos há quase dez anos. Sua rotina diária, antes da pandemia, era trabalhar fora de segunda à sexta em horário comercial, fazer compras para casa aos sábados e visitar as filhas aos domingos. Com a pandemia, o trabalho tornou-se remoto e as visitas precisaram cessar. Para ter uma boa noite de sono, precisa tomar remédio controlado. Com a flexibilização do comércio e as duas doses da vacina já tomadas, atualmente, ele pode ir trabalhar presencialmente duas vezes no mês. “É cansativo. Não aguento mais ficar em casa. Quando eu ia para o trabalho nos dias úteis, pelo menos interagia com outras pessoas e nem via o tempo passar. Fico pensando que preciso arrumar algo para fazer, um lugar para ir aos finais de semana”, ele conclui.

Terapia pra quem?

Num mundo ideal, todos teríamos acesso à assistência profissional adequada para vivenciar o luto de forma saudável, passar por períodos delicados e complexos, como a pandemia, sem sermos brutalmente abalados. Deveria vir da empresa que organizava a feira de diversões, da justiça do seu Estado, da vizinhança ou de Harry o amparo para que ele suportasse o luto de sua esposa e seu filho sem se fechar para o mundo ao seu redor? Não existe um padrão e nem uma receita milagrosa para curar nossas feridas, mas há, sim, pessoas que são capacitadas para nos ajudar a cicatrizá-las da melhor maneira.

Talvez se Harry tivesse recebido acolhimento correto a partir do seu luto não teria se amargurado e eliminado todas as possibilidades de ter uma vida feliz depois da tragédia. Talvez se alguém tivesse estendido a mão e dissesse que estava ali para ele naquele momento tão difícil e doloroso, ele não teria falecido sozinho em casa e sido esquecido por tantos meses. Existiam inúmeros cenários em que Harry pudesse ter finais diferentes do que sua realidade, mas infelizmente ele não teve acolhimento para que algum deles acontecesse de fato.

Não são muitos idosos como Maurício que tem a consciência plena de que precisa de apoio médico e psicoterapêutico para conseguir passar pela angústia que se instalou em seu emocional após quase dois anos enclausurado em casa. Para ele, ser um ex-alcoólatra é um agravante, já que nos momentos mais tristes e solitários ele sente muito desejo em recorrer as bebidas. Maurício encontra sua força no amparo essencial da sua família e na busca por uma vida cada vez mais saudável, exercitando sua mente e seus músculos quando possível, alimentando-se bem e indo às consultas médicas necessárias.

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