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27/03/2022 às 19h30min - Atualizada em 27/03/2022 às 16h35min

Atemporalidade artística: reflexões acerca da música "Tempo e Artista" de Chico Buarque

A canção é carregada de impressões e referências à vivência dos artistas dentro de seu "tempo"

Adriely Sousa - Editado por Larissa Bispo
(Reprodução/Google)
A obra discutida a seguir trata-se de uma exímia representação da ação do tempo na vida artística. A canção "Tempo e Artista", do álbum Paratodos de Chico Buarquelançado no ano de 1993, reflete lindamente uma realidade humana, sensível e madura, bem como desnuda que todo artista tem sua atemporalidade, seus mistérios. Assim, sua realidade é exprimida através das mais variadas formas de manifestação da arte. Essa música, desde a melodia, cada compasso na voz de Chico, tem uma vastidão de significados.

Com essa canção, será feito um paralelo da produção artística desde os tempos mais remotos, até um dos contextos mais difíceis para essa classe — a pandemia da Covid-19. Qual é a perspectiva desse setor perante os percalços, superações e temporalidade imputada a todo e qualquer indivíduo? Em vista disso, é interessante percebermos a ambiguidade da palavra "tempo", quando há a junção da mesma com a Arte. Aliás, qual será o papel desse ofício na sociedade? Que legado nos deixa os artistas, suas identidades e trajetórias? Como possível resposta à essas indagações, o artista plástico paraense Afonso Camargo Fona, que produz obras com foco na Amazônia, em entrevista concedida em maio de 2021 para o livro-reportagem "Olhares Artísticos na Pandemia", realizado por acadêmicos de Jornalismo da Universidade Federal do Tocantins (UFT), pontua acerca do suporte do governo à essa categoria social, seus anseios e problemáticas decorrentes da pandemia. 


Segundo Afonso, ao relembrar a fragilidade mais latente desse setor durante o período da pandemia, o artista frisa: 

"Poucos governos, pelo que eu sei, investem maciçamente na cultura, nessa questão de gerar recursos de conquistas diretamente. A Lei Aldir Blanc, ela veio de mão cheia, mas ela veio no contexto da pandemia, né? Ou seja, um artista teve que sair daquele plano, projeto para ser lembrado, e sua vicissitude ser transformada em lei. Então, nas vicissitudes, há um ganho; nos momentos de crise que vem as soluções."
  

Conforme a pesquisa realizada em 2020 pela Unesco, em parceria com o ICOM (em inglês, International Council of Museums), em reportagem publicada por Maria Luiza Rodrigues pela Editora Sextante, alega-se que 85 mil centros culturais de todo o mundo fecharam durante a pandemia e com o isolamento social. Em virtude disso, muitos artistas tiveram que adiar produções, buscar novas maneiras de propagar suas obras, assim, evidenciando a precariedade da economia criativa e percurso desse setor. Vale ressaltar que as representações artísticas desempenham um exímio papel reflexivo na sociedade, corroborando tanto suas mazelas enraizadas, como na solidariedade, na reprodução de ações que estão à frente da contemporaneidade, no levantamento de questões sociais que geram bastante polêmica, que confrontam ideais do autoritarismo, racismo, machismo e a ignorância primitiva que ainda assola a civilização.

Para mais adiante dessa perspectiva, não é à toa que por ser um dos mais célebres artistas da Música Popular Brasileira (MPB), Buarque adquiriu com esse "tempo" a maturidade, lições e aperfeiçoamentos. E por por mais que essa atemporalidade seja descrita em suas obras, sabe-se que o tempo age inevitavelmente sobre o corpo físico. E é justamente isso que o cantor revela em sua canção: 
 

O tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca
Como contrapesos de um sorriso

  

Como consequência, o enfretamento da pandemia para vários artistas foi, e tem sido, uma guerra premente contra esse "tempo". Embora o percurso nesse mundo se dê através do envelhecimento físico, o artista desempenha seu trajeto por meio da Arte. O tempo pode levar a juventude de um corpo, uma superfície, mas a eternidade do artista é no encapsulamento de suas expressões. Nisso, é evidenciado que mesmo que esse tempo irredutível alcance a estrutura corporal, esse também lhe engrandece a alma, sua sensibilidade torna-se mais aguçada e livre. Com isso, a passagem da vida e aprendizados dela se tornam professores da experiência. O artista vira obra do tempo e, em virtude disso, suas criações capturam e eternizam momentos que serão apreciados por outras gerações. 

Outrossim, a carência de políticas públicas que fomentem e prestigiem a Arte só comprova que apesar de todos esses avanços da era tecnológica, dos sobressaltos na democracia, na tão falada "evolução humana", a transcendência artística e seus efeitos positivos, introspectivos e humanista, ainda tem audiência de poucos e desaprovação de multidões. Em meio aos caos, os artistas tentam "pintar o céu de azul". Às vezes, desenham um "arco-íris" contra a intolerância, ignorância e um apelo ao amor, respeito e solidariedade. Mas também, quando necessário, fazem esse mesmo céu azul transformar-se em chuva e tempestade, quando expõe as vulnerabilidades das adoções públicas, a desolação na educação, saúde, setores culturais sendo destituídos, e milhares de brasileiros na carência.

Ao abordar a ineficácia de políticas públicas a essa esfera, Afonso explica de que maneira a Arte enriquece a cultura de uma sociedade. Com isso, evidencia a condição precária que o atual Governo impõe às manifestações artísticas:
 

"Percebo que existe também, com essa experiência de mais de 15 anos no barco, um ligeiro despertar dessa sensibilidade. A gente já vê os editais funcionando. Pois o edital para mim, é um exercimento democrático de acesso ao artista. Pelo menos acaba aquela política do “toma lá dá cá”, onde o meio artístico ficava sempre na penúria. Na minha opinião, um governo que não investe no seu povo, que desdenha sua cultura, um governo que acima de tudo, não aceita a sensibilidade do artista, esse governo não tem validade nenhuma [...]. O homem foi feito para viver bem, e a Arte é o manifesto ideal. Um governo que descredibiliza a ciência, as Artes, pra mim não serve de nada!"

Através da literatura, dança, artes visuais, música, teatro, fotografia, pode-se absorver uma infinitude de pensamentos, desejos, revoluções, fracassos e por que não assombro? Nesse viés, Ricardo V. Barradas chega a enfatizar: “Infelizmente, a arte do século XXI ainda não atingiu a nova linguagem e nem tingiu para alterar a cor primitiva do contemporâneo brasileiro.” Dessa forma, para que esse manifesto seja compartilhado, a sociedade precisa quebrar com os paradigmas preconceituosos lançados ao meio artístico. A expressidade da Arte pode partir de variados protagonistas e, assim, serem telas e porta-vozes de sua unicidade. Na 3ª estrofe da canção:
 

Já vestindo a pele do artista
O tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor, subindo ao palco
Apenas abre a voz, e o tempo canta




Com isso, Buarque enfatiza que "cantar" é uma espécie de atualização, uma homenagem ao tempo. O cantor deixa bem claro que apesar do tempo agir sobre a voz, sobre as mãos e movimentos, o artista, ainda assim, luta contra esse tempo cósmico, frustrante. O artista rompe com as barreiras das estações, do espaço e cria seu próprio infinito e "permanência" no mundo. Por isso,  a Arte vem como uma mediadora dos conflitos — ora pode nos curar, mas também pode ser o veneno às mentes que ainda caminham rumo a pensamentos primitivos — de caráter infundado, preconceituoso e machista. O "Tempo" é cíclico, porém suas marcas podem ser eternas. 

Portanto, com essa obra, Chico Buarque nos deixa uma riqueza de significações, pensamentos profundos e sua excentricidade. Contudo, é indubitável a resistência que se desenvolve na transformação das ideologias de massa, na constante inclusão social e de gênero e, por fim, na erradicação da miséria intelectual e disseminação da verdadeira cidadania. Buarque como escritor, cantor, compositor, certamente, sabe o que é lutar contra a temporalidade. Esse tempo pode ser pessoal cultural, social e afetivo. Nisso, o fim da música arremata o ápice da jornada de um artista fazendo seu papel no teatro da vida:
 

No anfiteatro, sob o céu de estrelas
Um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo alcance a glória
E o artista, o infinito


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