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16/10/2023 às 13h53min - Atualizada em 16/10/2023 às 13h41min

"Garotos pobres atirando em meninos esfarrapados"

Uma crítica de mídia da reportagem "Mães vivas de uma geração morta", de Eliane Brum

Nathália Aguiar - Editado por Fernando Azevêdo
Filme Cidade de Deus (Foto: Divulgação)


Em uma guerra, não há misericórdia. Seja ela travada em países distantes, seja dentro das casas de família, seja nas ruas de uma cidade viva, cheia de gente morta. Na guerra, nem sempre o que importa é a vitória, mas a sobrevivência. E isso, no final das contas, é o mais difícil de se fazer. A expectativa de vida, na guerra do tráfico, é diminuída em 7,4 meses no Rio de Janeiro e para o Brasil inteiro. Já a perda ao nascer é de 4,2 meses, segundo novo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), divulgado em 22 de junho de 2023. A pesquisa foi baseada no número de homicídios relacionados ao tráfico de drogas no Brasil, seja por conflitos entre facções criminosas, usuários ou por repressão da polícia. 

No sexto capítulo do livro “O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real (2008)”, na reportagem intitulada “Mães vivas de uma geração morta”, Eliane Brum escolhe contar um outro lado dessa história: a de quem fica. A de quem mais sofre a dor da perda e se angustia dia após dia por decisões que nem mesmo foram suas. Selvina, Maria, Enilda, Josefa, Eva, Graça, Helena e Francisca. Mulheres de todas as idades com uma coisa em comum: todas enterraram seus filhos mortos pelo tráfico. 

  
O peso das histórias dialoga com as palavras que Eliane optou usar para contá-las. As entrevistas foram realizadas em 2006, mas ainda são reflexo da nossa sociedade, mesmo após 17 anos. Como é comum nos textos de Brum, a escrita é tão crua e real que torna a leitura difícil, devido à dureza dos relatos. 

    
Inicialmente, a jornalista introduz o assunto da reportagem com dados da violência no país, adentrando ao conteúdo que será desenvolvido ao longo do texto.

 

Nesta reportagem, a guerra brasileira é revelada pelo olhar e pela voz das mães dos mortos no tráfico. São dessas mulheres os úteros que geram soldados – jamais comandantes – para a narcopátria. Seus meninos tombam por tiro, faca, granada. Não como exceção, mas como fato corriqueiro.

- Mães vivas de uma geração morta, Eliane Brum

 

   
Eliane destaca, também, que a morte tem alvo certo, avaliando não apenas a idade, mas também a cor e a classe social, considerando dados do estudo Cor e vitimização por homicídios no Brasil, realizado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que demonstra que as chances de ser assassinado é quase o dobro para pardos e quase o triplo para negros. Nos locais onde a renda é menor, as estatísticas também aumentam. Tanto que muitas vezes as pessoas que se envolvem com o tráfico de drogas são aquelas que se encantam pela ilusão de um retorno financeiro rápido. Como Eliane Brum diz, porém, “o dinheiro não está com as mães, nem esteve com seus filhos". 

    
Em seguida, a jornalista inicia com os relatos das mães. Sete vítimas, junto aos seus filhos. A escrita de Eliane não deixa a desejar, transparecendo em cada um dos depoimentos os sentimentos das mulheres e a dor que sentiram e ainda sentem pela perda prematura daqueles que geraram, cuidaram e depois, enterraram. A sensibilidade da autora com a narrativa é peça-chave para a reportagem. Em muitas frases, notamos a escolha delicada de palavras, que em cada oração passam ao leitor um sentimento, uma ideia. Um exemplo disso encontramos em “Seria um ar impossível não fossem os pulmões de Selvina adaptados ao impossível”, na parte intitulada “A mãe mutilada”, em que Eliane Brum exalta a força de Selvina. Apesar de tudo, ela respira, sobrevive. 

    
Eliane encontra, nos mínimos detalhes que permeiam a vida dessas mulheres, como aspectos de suas casas, uma história a qual está disposta a ouvir e a contar. Ela adentra nos problemas, encara com carinho e com compaixão. Para o jornalismo, humanizar-se e humanizar a narrativa aproxima o leitor e enriquece o texto, além de ser indispensável para a construção de um trabalho decente, em ética e qualidade. Adentrando no submundo de ruas invisíveis, ela escancara um problema que grita e choca a quem lê. São, segundo o historiador Marcelo Freixo, da ONG Justiça Global, como Eliane destaca em seu texto, “garotos pobres atirando em meninos esfarrapados”.

  
Parte da vida dessas mulheres foi tirada delas quando os tiros acertaram seus filhos. Eles foram tirados delas, mas elas nunca os deixarão ir em memória. Afinal, para elas, é tudo que resta. Citando Eliane Brum:

 

Não há como visitar o país dessas mulheres sem se queimar. Mas com o tempo a ardência vira uma marca cada vez mais tênue. Para nós, sempre é possível partir. Para elas, não. No lado do Brasil em que vivem, não há saída de emergência. Ao tocá-las, escutar a sua dor, sentar em suas cadeiras de pregos, percebemos que somos mais semelhantes do que diferentes. O que nos torna desiguais é o que as condena e o que nos envergonha: para nossos filhos há futuro, e para os delas há caixão.

 

    
O trabalho de Brum na produção dessa e das outras reportagens que compõem o livro “O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real” é a prova de que ainda existem narrativas pautadas na comunicação real ditada por Moran (2007)  como aquela em que a fala do outro tem repercussão, ajuda a pensar e a, eventualmente, modificar o leitor/ouvinte, e é exemplo para aqueles que querem se aprofundar nas entranhas do jornalismo - e do mundo. 


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