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19/02/2021 às 08h59min - Atualizada em 19/02/2021 às 08h27min

Padre Júlio Lancellotti: tirando as pedras do caminho

Pedras foram instaladas em viaduto pela prefeitura de São Paulo e sensibilizou Lancellotti

Ianna Oliveira Ardisson - Editado por Andrieli Torres
Fonte/Reprodução: Instagram @padrejulio.lancellotti
Pessoas em situação de rua vivem em constante sofrimento com as aflições que a cidade lhe impõe; estar pela cidade de um lado para o outro em busca de abrigo, não saber se estará segura da chuva e do frio. Dormir debaixo do viaduto seria uma forma de se proteger melhor, mas, de repente, em São Paulo, a pessoa ao chegar no viaduto se vê expulsa pelas pedras estrategicamente colocadas ali para a afastar.

A situação está posta, o indivíduo não tem onde dormir. Ainda bem que existem pessoas com uma missão e indignadas diante de tanta injustiça. Padre Júlio Lancellotti fez barulho naquele dia 2 de fevereiro de 2021. Barulho maior do que o feito pelas marretadas nas pedras, foi o barulho que repercutiu da sua ação de compaixão. Pedras instaladas debaixo de um viaduto na cidade de S
ão Paulo foram retiradas na ação de protesto do padre.

Em um vídeo nas redes sociais, padre Júlio ficou indignado com o “motivo” de terem colocado as pedras no viaduto e olhando para aquela estrutura ainda repleta de pedras se pronunciou sobre o caso.
“É uma estrutura muito violenta, muito agressiva, basta olhar, só o olhar isso agride, porque eles poderiam ter posto verde, poderiam ter posto arbusto. A forma como isso foi colocado é muito agressiva, muito violenta e é antipopular, antipovo, antipobre, antipessoas que estão em situação de rua”.

Após a ação do padre, a prefeitura retirou todas as pedras instaladas. Com o espaço já “livre” padre Lancellotti conclamou a população para um “protesto das flores” debaixo do viaduto, no sábado dia 6 de fevereiro. Flores como algo belo e que encanta com as possibilidades do florir.  Diferente das pedras que implicam algo estático, morto, surge a delicadeza de uma flor para representar um movimento de vida, de renovação e esperança.



No artigo “Interdições ao corpo no corpo da cidade: arquitetura, urbanismo, discurso e controle social”, Elisa Cox e Maria Inês Pagliarini Cox trabalham a questão da arquitetura hostil no espaço urbano. As autoras destacam como as cidades são planejadas de modo a afastar os “indesejáveis” do espaço público.
“Se o capitalismo é eficiente na redução de cidadãos a consumidores por excelência, é também eficiente na geração de uma numerosa população residual despossuída das condições mínimas para o consumo, que, por isso, pode se tornar indesejável no cotidiano da cidade. Essa população empobrecida constitui o “outro” das cidades contemporâneas.  E, para afugentá-la de ruas e espaços públicos, locais por onde circulam consumidores, há um esforço deliberado da administração e da iniciativa privada para torná-los inóspitos por meio de uma arquitetura e/ou design “anti-mendigos”, “anti-indesejáveis”.
 
As autoras esclarecem como são planejados e preparados os espaços “vazios” para que não sejam ocupados por aqueles que estão em situação de rua.
“Preenchidos por elementos que provocam ferimento nos corpos, os espaços urbanos “vazios” são planejados e preparados para expulsar o outro”.
 
Elisa Cox e Maria Inês Pagliarini Cox apontam uma questão interessante de ser notada, a de que advertências escritas de proibição de ocupação de certos espaços podem ser facilmente descumpridas, mas ao se deparar com uma arquitetura planejada para machucar o corpo, o sujeito, inevitavelmente, se afastará daquele lugar.
  “Ao invés de o discurso da organização urbana se fazer por meio de advertências verbais, como: “É proibido deitar-se aqui.”, “Não se deite aqui!”, “Não ocupe este espaço como moradia!”, e outros do gênero, posicionadas de modo a indicar o objeto do mobiliário ou o espaço interditado, ele se faz por meio de uma forma de expressão material que praticamente inviabiliza a contestação. Uma proibição ou uma ordem verbal sempre pode ser contestada ou ignorada por aqueles a quem se dirige, mas, quando se materializa no objeto mesmo da interdição, ela torna a recusa praticamente impossível. O pré-construído que vige no discurso urbano é o de que espaço vazio é lugar potencialmente ocupável por moradores de rua. Assim, é preciso preenchê-lo e, de preferência, com elementos hostis que causem padecimento ao corpo, dissuadindo o sujeito sem lugar na cidade de nele se alojar, pela lembrança da dor e não pela racionalidade dos argumentos”.
 
Esconder a pobreza e a desigualdade não é solução para os problemas. Governantes procuram esconder dos olhos dos cidadãos para que maior seja a sensação de que ela [a pobreza] não existe. Não poder ver as pessoas desabrigadas, vivendo ali embaixo de um viaduto, dá a sensação de que esse problema está solucionado. Se não vejo moradores de rua, então não existem mais pessoas nessa situação.

Uma ilusão que pretendem provocar na mente da população, nossos olhos precisam ser abertos para enxergarem que eles existem e estão sendo expulsos do espaço público a todo custo para preservar a “boa imagem” da cidade. Mais do que enxergá-los, são necessárias políticas públicas para garantir uma vida digna a essas pessoas.

Infelizmente sem as ações dos governos, resta a solidariedade da população e também ações voluntárias de ajuda que são promovidas, por exemplo, pelo padre Lancellotti que se empenha em ajudar as pessoas em situação de rua.

O protesto do padre ao quebrar as pedras deu maior visibilidade à essas pessoas, porém, as ações sociais dele vão além do protesto. Júlio está constantemente com essas pessoas e arrecada doações para ajudá-las. Lancellotti tem um trabalho louvável de acolhida e ajuda que repara as mazelas que deveriam ser cuidadas pelo poder público.

 
Referência:
COX, Elisa Pagliarini.; COX, Maria Inês Pagliarini. INTERDIÇÕES AO CORPO NO CORPO DA CIDADE: ARQUITETURA, URBANISMO, DISCURSO E CONTROLE SOCIAL. Linguasagem (São Paulo), v. 24, p. 1-15, 2015. Disponível em: http://www.linguasagem.ufscar.br/index.php/linguasagem/article/view/161. Acesso em 15/02/2021.

 
 
 


 

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