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05/03/2021 às 09h52min - Atualizada em 05/03/2021 às 09h50min

Proibido usar branco: a guerra santa do Complexo de Israel na Zona Norte do Rio de Janeiro

Organização criminosa utiliza a intolerância e o racismo religioso para aterrorizar candomblecistas e umbandistas

Karoline Miranda - Editado por Gustavo Henrique Araújo
Foto/Reprodução: Portal Diferença
A liberdade religiosa é prevista pelo artigo 5º da Constituição Federal e pelo artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em contrapartida, a intolerância religiosa é crime no Brasil desde 1997, com pena de reclusão de um a três anos e multa. Dentro desse universo, porém, as religiões de matriz africana nunca estiveram totalmente salvaguardadas. O candomblé foi descriminalizado em 1936 e a Umbanda em 1944, mas a discriminação permanece até hoje. Por toda a perseguição envolta dentro dessas religiões, o termo "racismo religioso" foi criado para designar a intolerância contra crenças enraizadas na cultura africana.

Parada de Lucas, Cidade Alta, Vigário Geral e Quitungo. O que essas comunidades da Zona Norte do Rio de Janeiro têm em comum? São dominadas pelo Complexo de Israel, organização criminosa composta por traficantes que implementam o terror não só pela conhecida violência do crime organizado nas favelas, mas pela intolerância e racismo religioso. Criado em plena pandemia, os integrantes do Complexo de Israel se entendem como “traficantes de Jesus”, apoiando-se nas crenças pentecostais e neopentecostais para justificar sua intolerância e, desde o meio do ano de 2020, aterrorizam moradores pertencentes às religiões afro. Desde o início deste ano, a milícia passou a integrar o grupo. 

Desde o início de seu domínio, o Complexo de Israel tem sancionado suas proibições, fechando ou até mesmo destruindo e vilipendiando terreiros de umbanda e candomblé. Mães e pais de santo são torturados psicologicamente e obrigados a quebrar os próprios terreiros sob as ordens dos criminosos. Tudo, é claro, em nome de Jesus. É uma verdadeira guerra santa dos dias atuais. 

“Há algumas proibições que vamos ouvindo, nada ainda ‘decretado’”, comenta Susana, de 24 anos, moradora de Brás de Pina, bairro próximo à favela da Cidade Alta, dominada pela organização. Apesar de não ser moradora da comunidade, o terror já chega até as proximidades. “No meu bairro não é tão assertivo, é como se eles estivessem agindo acima. É estranho, sabemos, em algumas situações podemos ver eles pelo bairro, mas nada tão forte quanto a gente vê na comunidade”. A intolerância chega até mesmo aos católicos: “Já obrigaram a tirar uma santa da Igreja Católica de uma das praças. Na verdade, foram na paróquia e fizeram o padre ir lá retirar ameaçando ele, sendo que a santa era antiquíssima”, conta a estudante. As proibições dos “traficantes de Jesus” também incluem usar roupas brancas ou qualquer associação a santos, umbanda ou candomblé.

Susana também é umbandista e revela que mesmo não morando nas comunidades, o terror psicológico está presente. “Sinto medo o tempo todo. Seja indo pro terreiro levando minhas roupas e guias, seja indo na rua sem poder usar uma guia. Há pouco tempo tirei meu protetor de tela que era [a imagem de] um orixá, pois sabia que poderia ser reconhecido. É estar o tempo todo atento para não ouvir ponto alto demais na varanda pra ninguém ouvir na rua e se alguém reparar algo da umbanda que eu esteja usando fico atenta e tensa."

A distorção de valores cristãos dentro da criminalidade não é uma novidade, mas não há registros de tamanha repressão e intolerância religiosa impostas por traficantes em sua própria comunidade quanto aos feitos do Complexo de Israel. Nesse contexto, é impossível deixar de interpretar a influência da ascensão de Bolsonaro ao poder. Deixando o Estado laico de lado, o presidente da República baseou sua campanha e estruturou o próprio mandato em Deus e nos valores conservadores cristãos, mas associando constantemente o armamento e a violência de seus discursos a esses valores. A onda bolsonarista trouxe à tona a justificativa de muitas violências e crimes baseados na palavra de Deus. 

“Eles pregaram que são de Jesus e que fazem isso por Jesus, mas Jesus é amor. Sempre foi”, desabafa Susana. “Querem pregar que meu Exu é o diabo, mas meu Exu me ensina a abaixar a cabeça e olhar com amor e respeito pra qualquer um que passe por mim. Seguir Jesus não é matar ou fazer crueldade em nome dele, é amar o próximo”. Por enquanto, o território dominado pelo Complexo de Israel segue em guerra santa. Apesar de tudo, que Deus, Oxalá ou Zambi nos abençoem. De preferência, os três. 

 
  Nota: O nome real da mulher entrevistada foi trocado para a proteção de sua identidade.    

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