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23/04/2021 às 02h24min - Atualizada em 23/04/2021 às 02h16min

"One Child Nation": o duro documentário sobre a política chinesa do filho único

O documentário revela detalhes da implementação da política e registra as consequências chocantes sobre seus cidadãos

Sara Moreira - Editado por Gustavo Henrique Araújo
Foto/Reprodução: Amazon Prime Video
Durante a década de 70, a população chinesa cresceu cerca de 170 milhões e se aproximava de 1 bilhão de habitantes. Assim era o cenário da República Popular da China, na época em que ocorreu a implementação da política de filho único, crescendo absurdamente a cada década. Considerando que o crescimento populacional poderia prejudicar a economia do país, foi instituída em 1979 a política de filho único em todo o país.
 
A medida em questão, consistia na proibição de casais de terem mais do que um filho. Quem descumprisse era obrigado a pagar severas multas, para garantir o cumprimento dessa determinação eram realizadas esterilizações forçadas e abortos seletivos principalmente quando se tratava de um bebê do sexo feminino. Existia uma preferência social por bebês do sexo masculino.
 
O documentário mostrar o conhecido desprezo com que a sociedade chinesa trata as mulheres. No filme isso surge de duas maneiras: na violência que desaba sobre o corpo das mães e no descarte desumano de bebês do sexo feminino. A tradição é que a mulher, ao se casar, passa a integrar a família do marido. Já o homem permanece na família, dando seguimento à linhagem e cuidando dos pais na velhice.
 
Nanfu Wang nos conta essa história do ponto de vista de pessoas que vivenciaram aquilo, por meio de entrevistas com parentes e diversos conhecidos que participaram e foram vítimas dessa política. Ao contrário da maioria das pessoas da sua idade Nanfu tem um irmão, na zona rural era permitido ter um segundo filho, homem, caso houvesse um intervalo de cinco anos desde a filha primogênita. E ela diz que se sentia envergonhada quando as pessoas descobriam que ela tinha um irmão, já que era como se a sua família tivesse errado por ter um segundo filho.
 
Uma cena do filme é emblemática “Meu filho tem a mesma importância que o filho do meu irmão?”, pergunta Wang ao avô. A resposta vem sem hesitação “Não”. A cineasta não tem fotos com o avô, que guardava doces e se deixava fotografar apenas com os netos homens. O irmão dela, constrangido, revela sua tristeza ao saber que Wang foi forçada a deixar a escola e trabalhar para que ele estudasse.
 
Para motivar as famílias a seguirem as leis o governo colocava todo ano placas nas portas de cada casa por todo o território chinês. Isso era usado para medir o comprometimento da família com os valores do Partido Comunista. As placas eram decoradas com estrelas, indicando o desempenho da família, e às vezes, era incluindo uma estrela se a família tivesse apenas um filho. A família de Nanfu, nunca recebeu aquela estrela.
 
Houve um esforço desesperado por parte do governo, para controlar a população e impor o limite de uma criança por família. As autoridades apostaram firme em incentivos econômicos e propagandas. Outdoors podiam ser vistos por todo o país. A política foi aprovada seis anos antes de Wang nascer, ela afirma que cresceu vendo lembretes da política em toda parte, eles eram pintados em muros, impressos em baralhos, calendários, lancheiras, livros infantis e muito mais. Tudo isso se misturava ao pano de fundo do cotidiano chinês. 
 
“Tentávamos convencê-los com propaganda, por meio de espetáculos de ópera, canções infantis e dança em todos os vilarejos. Era tudo para promover os benefícios de ter um filho só. Nosso objetivo era promover através da arte folclórica.” Tunde Zeng (Antigo chefe do vilarejo)
A cada ano, o governo  punia ou recompensava, as parteiras e os agentes de planejamento familiar, dependendo de quantos bebês nasciam em seus territórios. A agente de planejamento familiar Shuqin Jiang recebeu todas as honrarias dadas pelo governo da época, desde o Prêmio de Excelência no Trabalho, Prêmio Nacional de Funcionária Modelo até ser recebida pelos líderes nacionais em um congresso. Entre eles estavam, o presidente do país e políticos importantes da época. A ex agente era recebida como heroína nacional, e teve sua história contada na tv repetidamente.
 
Ao retornar para sua cidade natal Nanfu Wang entrevista sua mãe, Zaodi Wang, sobre como era a fiscalização da política do filho único, “Era muito rígida, eu mesma vi muitas casas serem demolidas porque as famílias recusaram a esterilização. Os telhados eram arrancados. Naquela época, a identificação do sexo do bebê não era permitida. Quando eu estava para ter meu segundo filho, minha família colocou uma cesta de bambu na sala e falaram “se for outra menina, vamos colocá-la na cesta e deixá-la na rua.” Quando souberam que era menino, todos gritaram de alegria."
 
Colocar bebês do sexo feminino em uma cesta e abandona-las era algo comum naquela época. Durante a entrevista com sua mãe, ela afirma que ajudou o tio de Nanfu a abandonar a filha no mercado do vilarejo, para ele tentar um menino novamente. “Não podíamos nos desfazer do bebê em plena luz do dia. Então, a levamos em uma cesta e escalamos montanhas durante a noite. Colocamos 20 doláres na roupinha dela e a deixamos no balcão do açougue. Ela ficou lá dois dias e duas noites. Ninguém quis, o rosto ficou todo mordido de pernilongos e ela acabou morrendo. Depois disso a enterramos."
 
“Eu sei que fiz algo entre 50 mil e 60 mil esterilizações e abortos. Contei por me sentir culpada, pois abortei... e matei bebês. Muitos eu tirei vivos e matei. Minhas mãos tremiam quando fazia isso. Mas não tinha escolha, era política do governo. Só cumpríamos ordens.” Huaru Yuan (Parteira)
O tio de Nanfu, Shihua Wang afirma que ficou extremamente emocionado quando abandonou a filha e que chorou durante os dois dias em que ela ficou ao relento. “Minha mãe ameaçou se matar, ela disse “se ficar com a menina, eu me mato. Ou a estrangulo antes de me matar”. Ele completa dizendo que não teve escolha, que achou que daquela forma salvaria a vida da filha, mas ninguém a quis e ela morreu.
 
Infelizmente aquela não foi a única pessoa na família de Nanfu a ser vítima direta dessa política. Sua tia por parte de pai entregou a filha para uma traficante conhecida do vilarejo. “Ela era prima do meu marido, ela fez isso por muito tempo. A maioria das meninas eram levadas ao mercado e morriam por lá, seus corpos ficavam cobertos de larvas. Sabendo disso como eu poderia deixar ela morrer como as outras? Eu nem pensava no futuro dela, só queria que vivesse."
 
Neste ponto do documentário somos apresentados a uma realidade nunca pensada pelo governo. O aumento no tráfico de crianças. Os traficantes eram chamados de cegonheiros, pois pegavam bebês abandonados e achavam lares para eles. As crianças eram vendidas para orfanatos ou diretamente para as famílias. O ex traficante de crianças Yueneng Duan, passou quatro anos preso e agora trabalha como segurança. “Eu e minha família fomos os que atuaram por mais tempo, mandamos cerca de 10 mil bebês para orfanatos”. Ele pegava o trem quase todo dia, de uma província a outra para caçar bebês abandonados, e então os vendia. Os orfanatos pagavam cerca de 200 doláres por cada bebê. Depois eles eram colocados para adoção internacional. Com o que recebiam, pagavam os traficantes, perpetuando o ciclo de transações.
 
“Se eu pudesse voltar no tempo, faria tudo de novo. Pensando bem, a política era absolutamente correta, nossos líderes foram proféticos. Se não fosse por essa política, nosso país teria morrido. Quando eu comecei como agente de planejamento familiar eu tinha 19 anos, e inicialmente achava que induzir abortos era uma atrocidade. Pensei em largar várias vezes... Muitos dos fetos tinham oito ou nove meses, ainda estavam vivos quando os tirávamos. Meus sentimentos pessoais não podiam se sobrepor ao interesse nacional.” Shuqin Jiang (Agente de planejamento familiar)
A China declarou guerra contra o crescimento populacional, mas ela se tornou uma guerra contra o próprio povo. “Lutamos uma guerra populacional". Esse era um slogan do governo, durante a política do filho único. Ao longo de todo o documentário temos Nanfu questionando se suas ideias sobre a política do filho único eram mesmo suas ou se foram aprendidas. E ela faz o mesmo com cada entrevistado, e fica difícil saber até onde a opinião popular foi formada pelo governo ou não.
 
Como consequência dessa política, ocorreu um aumento da expectativa de vida e uma queda nas taxas de fertilidade, a regra de uma criança por família revelou-se uma ameaça ao desenvolvimento econômico chinês. A precariedade da mão de obra é crescente. Conforme dados do ano passado da Comissão Nacional de Saúde da China, em 2050 o país deve chegar a 487 milhões de idosos, que é equivalente a 34,9% da população.
 
Atualmente, esse índice é de 17,3%. O resultado de tudo isso foi um grande inconveniente para o governo, como arcar com a saúde e a aposentadoria de tantas pessoas? A lei então se tornou mais branda. Se ambos os pais fossem filhos únicos, agora estavam autorizados a ter o segundo bebê. Até que em 2015, o governo deu fim a essa medida. Com isso todas as famílias chinesas estavam livres para ter o segundo filho. A medida, porém, não teve o sucesso esperado.
 
Mesmo que as autoridades e propagandas atualmente incentivem os jovens chineses a “ter mais filhos em nome do país”, a sociedade não parece confortável em aumentar a família. O número de nascimento só cai com o passar dos anos.

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