Lab Dicas Jornalismo Publicidade 728x90
09/07/2021 às 11h03min - Atualizada em 09/07/2021 às 10h24min

Pequena Coreografia do Adeus | Como as primeiras experiências da nossa vida nos afetam?

Em seu novo romance a escritora Aline Bei, levanta a discussão sobre os impactos do trauma na infância

Daniela Palmeira - Editado por Talyta Brito
Foto: Reprodução/ Google
         Pequena Coreografia do Adeus é o novo livro de Aline Bei, autora brasileira contemporânea que ficou conhecida pela sua estreia na literatura com o livro O Peso do Pássaro Morto, com o qual ela ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura. Em seu novo romance – que também carrega a escrita característica, em prosa, da autora – Aline Bei traz a história de uma menina chamada Júlia Terra. Ao longo do livro acompanhamos, por meio das próprias palavras da personagem, sua infância e o começo da juventude e amadurecimento.



        

 
        Logo no começo do livro já temos uma visão das dificuldades da vida de Júlia Terra. Seus pais são separados e ela mora com a mãe, com a qual compartilha uma relação complicada. Dona Vera, a mãe de Júlia, é uma mulher amargurada com a separação e fechada e arisca com a filha. A primeira cena entre Júlia e a mãe, mostrada no livro, é de uma violenta surra que a menina recebe por ter brigado com uma coleguinha. Ainda que haja alguns momentos de cumplicidade entre as duas, esse é o contato que marca a relação de mãe e filha no decorrer da narrativa.

“no fundo / minha mãe era uma flor / que sangrou por ser idealista / por isso se fechou / em aço / se abria apenas quando o Sono era quem / comandava o seu espírito.”

         Quanto ao convívio e relacionamento com o pai, é algo que a própria Júlia em muitos momentos considera melhor, no entanto é um vínculo que se esconde atrás do véu do abandono parental. A típica história da paternidade quando conveniente. Assim, apesar de os momentos com o pai serem tranquilos em sua maioria, não são tão regulares e duradouros. 

         A falta de diálogo – praticamente inexistente – entre Júlia e seus pais é palpável, e se destaca como um aspecto influente que irá determinar a forma como Júlia se comunica e se relaciona com os outros.

“uma conversa em minha família / nunca foi possível, não na minha casa / lá somos três solitários / irreversíveis / gravemente feridos / da guerra que travamos contra nós.”

         Acompanhamos a infância de Júlia até a metade do livro, quando de repente, em uma troca abrupta de capítulos, nos deparamos com uma outra Júlia. É apresentado ao leitor uma moça jovem, que já há alguns anos deixou a infância para trás e hoje mora sozinha em um quarto de pensão e trabalha em um café, dona de sua independência, mas ainda assim marcada pelo passado. 
          Esse salto temporal que Aline Bei traz para a história surpreende o leitor, que talvez ainda esperasse desdobramentos a mais sobre a infância de Júlia e inesperadamente se encontra com ela em outra fase da vida. Esse lapso de tempo, no entanto, tem muito a nos dizer, principalmente por ser possível ver quem aquela garotinha se tornou.
         A personagem apesar de ter um estilo de vida muito diferente do que o que viveu na infância, carrega ainda consigo muito dos traumas e das cicatrizes que suas memórias não deixaram se apagar. A partir disso, a autora consegue mostrar por meio de sua personagem, como os traumas vividos durante a infância deixam sinais que muitas vezes, nunca param de se manifestar e se mantém conscientemente presentes.
         Essa é uma questão extremamente sensível, que está para além da ficção. Segundo pesquisa da psicóloga Vanessa Fernandes Fioresi, "Quando alguém passa por traumas durante a infância ou adolescência, a pessoa passa a entender que o ambiente onde vive é inseguro e se torna mais reativo a ele. Isso pode contribuir para um estado de hipervigilância e ansiedade”. 
         Júlia, devido a toda violência e abandono, não conseguia ver sua casa como um lar, sempre se sentia insegura, como se a qualquer momento algo ruim pudesse acontecer. Quando começamos a conhecer sua nova vida, é possível perceber como o quarto da pensão onde ela vive, é o que, depois de muito tempo, chega o mais perto possível de um conceito de lar, apesar de ainda se sentir insegura.
         O médico Francisco Assumpção, professor livre docente pelo departamento de psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), conta também que, "A criança precisa estar segura e se sentir segura. A partir do momento que isso não acontece, ela tem dificuldade de se relacionar com os demais. E ela vai se desenvolver a partir dessa dificuldade. Se você colocar agressões do tipo físico, isso piora”.
         Apesar de Júlia ser uma mulher sensível e gostar de ouvir os outros, ela demonstra muita dificuldade em se abrir e conversar com os outros sobre si mesma. Por vezes ela encara sua história como algo que deve ser deixado de lado, e mantém guardada em algum lugar escondido em suas memórias.
         A forma com que Aline Bei constrói sua personagem ao longo da narrativa de A Pequena Coreografia do Adeus, demonstra os perigos do trauma durante a infância e como isso pode ecoar em muitos momentos no decorrer da vida. A autora também mostra como essa história é especialmente, sobre liberdade, pois a medida que a personagem vai conhecendo as possibilidades que a vida pode lhe oferecer, os traumas dão espaço aos sonhos.
Nesses casos o recomendado é que sempre se buque acompanhamento psicológico, para que a vítima entenda que ela não se define apenas a soma dessas experiências. Como conta a psicóloga Patrícia Amorim em um artigo do seu site Trocando Fraldas, “O ser humano é formado por ensinamentos, vivencias e experiências ao longo de sua vida”, e é esse conjunto que vai pouco a pouco, construindo aquilo que seremos.

Link
Notícias Relacionadas »
Comentários »