Lab Dicas Jornalismo Publicidade 728x90
19/08/2021 às 19h40min - Atualizada em 19/08/2021 às 19h31min

Crônica: Quero estar feliz por você, mas não consigo

A cada dia que passa me pego com mais inveja daqueles que conseguem ver o lado bom em meio ao caos

Raphaela Vitor - Editado por Andrieli Torres
Foto: Reprodução/ Free-Photos por Pixabay
Acordar, trabalhar, falhar em se exercitar, se esforçar para começar aquele curso de alemão que comprei em abril deste ano, tentar me concentrar no livro que empaquei há mais de um mês, ir dormir me prometendo ser mais produtiva no amanhã, uma mentira que continuo a contar para mim mesma.

Uma mentira que vem me assombrando desde que o “novo normal” se tornou um mantra social, “devemos nos adaptar” é o que disseram. Me pergunto como? Como me acostumar quando ao meu redor o mundo se transforma em uma grande metáfora do Titanic atingindo em câmera lenta o iceberg.

Porém, nessa mesma realidade sou telespectadora daqueles que conseguiram ver o lado bom de toda essa tragedia. Desconheço os seus nomes, mas memorizei seus users nas redes sociais.

Ainda me recordo de quando o país atingiu pela primeira vez 100 mil mortos pelo inimigo invisível, 8 de agosto de 2020, o mesmo dia em que uma amiga de Instagram comemorou os seus 100 mil novos seguidores em uma festa privada, e em seu discurso ressaltou que se não estivesse trancafiada em casa nunca conseguiria se dedicar a sua nova carreira.

As felicitações que planejava escrever em sua foto bem editada, complementando um feed paradisíaco, nunca saíram das pontas de meus dedos, aparentemente eles não conseguem mentir, no entanto, se me perguntassem se tinha ficado feliz por ela, meus lábios seriam traiçoeiros ao ponto de enunciar uma resposta positiva, mesmo a verdade estando bem longe disso.

Não, não estava feliz por ela, nem pelos outros milhares que habitavam a mesma realidade paralela que ela. Tentei me afastar, sem êxito. Tive de presenciar Manaus colapsando por falta de oxigênio, enquanto outro usuário propagava as inúmeras oportunidades econômicas de um país quebrado “pense como um investidor”, era a frase de efeito em sua legenda.

As notificações não pararam aí, para cada catástrofe alguém parecia ter um motivo diferente para celebrar. Quase perdi meu avô, uma semana depois vi uma colega de trabalho arrumar as malas, entrar em um avião que tinha como destino o centro da nova variante delta, “só se vive uma vez” foi o que me disse. Não consegui sibilar nada para lhe desejar uma boa viagem, era simplesmente incabível pensar que ela tinha que ver pela quarta vez o Cristo Redentor.

E após 308 dias presa entre essas duas realidades que não parecem coincidir no mesmo ecossistema, me deparo invejando de maneira brutal os moradores do Eden. Não escondo que os abomino, porém, os invejo na mesma intensidade. Daria tudo para não me importar que o mundo estivesse sucumbindo diante dos meus olhos. Daria tudo para não estar em inércia enquanto engaveto os planos e os deixo à mercê de um futuro incerto. Daria tudo para conseguir mostrar todas as minhas conquistas nessa nova moda de “eram para ser só quinze dias”, mas não possuo nada com que me gabar.

Ainda os invejo, admito que enxergar a calmaria em meio ao caos deve ser uma árdua tarefa e realizada por poucos, mas desconfio que esse seleto grupo esteja embriagado pelo deslumbre do conforto de não terem sido atingidos pelo tornado. No entanto, eu fui, e dispenso fazer uso de quaisquer etiquetas da boa vizinhança, é por essa razão que sou incapaz de dizer que: estou feliz por você.

Link
Tags »
Notícias Relacionadas »
Comentários »