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28/08/2021 às 12h12min - Atualizada em 28/08/2021 às 12h00min

Qualquer representatividade é representativa?

Embora positiva e necessária, nem toda tentativa de representar minorias é ideal

Ana Paula Alves - Editado por Larissa Bispo
Montagem: Ana Paula Alves / Imagens: Pixabay

Discussões sobre representatividade têm sido cada vez mais recorrentes, pois com as minorias ganhando força para exercer suas vozes não é mais possível fingir que elas não existem e que não fazem parte da sociedade. E com a luta LGBTQIA+ adquirindo espaço em produções midiáticas e literárias, é cada vez mais comum ver personagens que fazem parte dessa comunidade e chamam a atenção para suas pautas. 

Isso permite que muitos se identifiquem com esses personagens, além de passar informações sobre o assunto, ajudando na luta contra o preconceito e por um maior entendimento geral sobre as pautas LGBTs.

Mas será que essa representatividade é, de fato, representativa?

 

Problemas de uma representatividade simplificadora

Arthur Malvavisco, escritor independente e LGBT, afirma: “Quando a arte trata dos problemas das pessoas não LGBTs, ela tende a tratar eles uma forma mais abstrata, de uma forma mais distanciada, menos escrachada”. Existe um desenvolvimento mais complexo, realizado de forma mais cuidadosa e não tão óbvia, mas “normalmente, quando as pessoas lidam com personagens LGBTs, não são aplicados esses recursos. O preconceito, a jornada de autodescoberta, sempre são tratados de uma forma muito simples, além de bastante estereotípica”, completa Arthur.

Muitas obras, ao tentar inserir diversidade, acabam criando personagens cuja descrição poderia se resumir a “o homem gay”, “a garota trans” ou “a menina bissexual”, pois suas histórias e personalidades não vão além disso. 

Enquanto isso, na mesma obra existem personagens não LGBTs que vão além, cujas tramas envolvem relacionamentos e problemas que não se baseiam em sua sexualidade ou identidade, ou seja, não são resumidos como “o cara hétero” ou “a garota cis”. Se estão na escola, eles podem ter conflitos familiares envolvendo uma escolha de carreira não aceita pelos país; se tem um relacionamento, podem surgir problemas relacionados à confiança ou erros cometidos, e suas personalidades envolvem diversas caratcerísticas ou traumas passados. 

Mas tudo que envolve personagens LGBTs é o “ser LGBT”. Seus conflitos familiares são sobre não aceitação da família por ser LGBT, seus problemas em relacionamentos são sobre enfrentar preconceito por sua sexualidade e, ainda, sua personalidade tem uma única característica: ser LGBT. E suas traumas, se existem, são sobre preconceito por ser LGBT. Essa repetição é cansativa. “É uma abordagem um pouco infantilizante, faz parecer que se não for feito de uma forma 100% literal, o público não vai entender, não vai comprar”, diz o escritor.

Uma outra problemática é sobre muitas obras retratarem esses personagens de formas parecidas, o que gera um tipo de estereótipo e cria o pensamento de que todo LGBT é daquela maneira. Arthur tem experiências pessoais com essa questão: “Quando falei para o meu pai ‘eu sou um homem trans’, o primeiro instinto dele foi comparar com um filme que ele tinha visto e falar que ‘não, você não é trans, porque eu vi nesse filme e é muito diferente, você não parece nem um pouco com uma pessoa trans, vai no psicólogo para resolver isso’”. Dessa forma, ainda que obras assim tragam uma introdução importante sobre temáticas LGBTs, elas não traduzem a complexidade e a diversidade total existente dentro da comunidade, gerando uma visão simplista e rasa.

 

Representatividade complexa

Os livros de Arthur Malvavisco, Senhores de Sombra e Prata.

Os livros de Arthur Malvavisco, Senhores de Sombra e Prata.

Imagem: [reprodução]

 

É importante criar uma representatividade que trate e construa os personagens LGBTQIA+ com o mesmo cuidado e complexidade de personagens que não fazem parte dessa minoria, mostrando, assim, diferentes histórias, personalidades e maneiras de lidar com a suas  identidades, que precisam ir além do ser uma minoria. 

Os livros do Arthur Malvavisco são um bom exemplo de como uma abordagem assim pode ser feita. A duologia Senhores de Sombra e Prata conta a jornada de Andras, um médico cirurgião e cientista que enfrenta problemas com a organização religiosa local, e Aeselir, um guerreiro literalmente animalesco, remanescente de uma guerra violenta. Durante a história são abordados temas LGBTQIA+, mas também temas como magia, diversidade cultural, perseguição religiosa, ressentimento pós-guerra, vício, tortura e seus traumas consequentes. E tudo está inserido em um mundo fantástico que periodicamente entra em colapso com destruição mágica em larga escala.

“Me incomodava bastante ser muito difícil eu me ver em livros de fantasia”, o escritor afirma sobre o porquê decidiu trazer essa representatividade para suas obras de fantasia. Ele continua: "O pessoal gosta muito de escrever literatura LGBT sobre autodescobrimento, mas de uma forma muito escrachado, muito óbvia. E eu pensei que seria interessante juntar minha jornada de autodescoberta, que eu estava passando naquele momento, e aplicar esses tropes da fantasia, estabelecendo uma identidade dos protagonistas”.

Os livros tratam bastante sobre questões da comunidade LGBTQIA+, afinal, os protagonistas e diversos outros personagens são parte dela, mas não é somente sobre esse tema. Segundo o autor, “é uma história sobre uma uma forma de relacionamento que não é acolhida pelo mundo, de nenhuma forma, mas não só porque são dois homens”, e, para ele, seria cansativo se o conflito fosse apenas isso. 

Em seu cerne, a jornada de Aeselir e Andras são livros de fantasia, que lidam com diversos outros temas que são mais relevantes para a história. “Porque eu vou me importar mais com o fato de um cara estar beijando outro do que com o fato de que ele pode destruir o mundo se quiser?”, Arthur questiona, se referindo aos conflitos que envolvem o poder mágico na trama. Assim, ser LGBT é uma das características dos personagens, não o que os define por completo. 

Uma coisa a se ressaltar, que deve ser analisada em obras que propõe diversidade, é a quantidade de personagens que trazem isso. No caso de Senhores de Sombra e Prata, grande parte dos que têm maior participação na história são LGBTQIA+, e isso é demonstrado explicitamente em diversas passagens dos livros.

Além disso, esses personagens apresentam muitas diferenças entre si, tanto em suas personalidades quanto em suas culturas. O autor explica que decidiu escrever dessa forma pois “a gente vive em uma dicotomia bem forte: ou o personagem LGBT é um anjo, imaculado, sofredor e vitimizado por todos os lados; ou ele é aquele vilão da Disney”, e ele completa dizendo que “queria aplicar essa diversidade moral e de pontos de vista a personagens LGBTs, aproveitar que eu estava escrevendo fantasia para explorar novas opções culturais, novas existências culturais de pessoas LGBTs”.  

Embora produções com esse cuidado ao tratar diversidade ainda não sejam a maioria, a simples existência de obras com representatividade positiva, mesmo em caso em que ela não é ideal, como foi explicado, já é um grande avanço e abre espaço para esse tema ser cada vez mais aprofundado e tratado de forma mais complexa e plural. Arthur diz que isso “é uma coisa que a gente está lutando. Vai demorar um pouco para isso se tornar mainstream, mas eu acho que é inevitável que aconteça”.
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