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02/12/2023 às 22h25min - Atualizada em 02/12/2023 às 19h15min

Mulheres negras no mercado literário

Como as mulheres negras enfrentam as dificuldades para ingressar e se manter no mundo dos livros.

Dominik Pereira - Edição por Mayane Humeniuk
Reprodução/ Blog Valkirias
No Brasil, a população é composta majoritariamente por pessoas negras, porém são poucos os espaços de destaque que elas ocupam. Este número é ainda menor relacionado a mulheres negras. Um levantamento realizado pela Gestão Kairós apurou que, de 900 líderes brasileiros, somente 25% eram mulheres, e apenas 3% eram negras. No mundo literário não é diferente, a presença da mulher negra é miníma se comparada à população. 
Seja como personagens ou autoras, ainda existe uma deficiência muito alarmante no mercado. Essas mulheres são totalmente esquecidas quando falamos do mercado literário formal, a porta de entrada para elas é a escrita independente. Decidem escrever e depois tentar uma publicação, porém sem "o lançamento" oferecido pelas editoras.
Atualmente, a plataforma de vendas Amazon é a maior para autoras independentes. Muitas começam em aplicativos de escrita gratuito, como Wattpad e Dreame, e depois os e-books chegam até a plataforma de vendas. Devemos ressaltar que, históricamente falando, o mercado literário sempre foi dominado por homens brancos. E esse fato se perpetua até os dias de hoje, porém autoras negras não se conformam mais com essa realidade e lutam para que seja modificada. 
Além da luta para entrar no mercado literário formal, também existe a dificuldade de aceitação do público com esses novos trabalhos. Algumas autoras se rendem ao padrão estético de personagens para serem aceitas. A cobrança por uma escrita militante também é grande e, quando autoras fogem disso para se estabilizar no mercado, são duramente atacadas. Em uma entrevista para o portal AzMina, Bettina Wrinkler, escritora de fantasia independente, diz que “é inimaginável o tamanho da violência que as autoras que escolhem o anonimato passaram para tomarem esta decisão (de não aparecer)”. 
A falta dessas mulheres no meio literário contribui para a continuidade de estereótipos e preconceitos. É preciso que elas falem sobre suas histórias, que sejam lidas e compreendidas. Desde sempre, homens brancos têm relatado histórias que não viveram e dores que não sentiram. Isso acaba banalizando as vivências e relatos dessas mulheres. 
A literatura na mão de mulheres negras é uma ferramenta poderosa, elas passam a ter um amplficador para as suas vozes e podem alcançar mais pessoas.

Inicio das mulheres na literatura
Toda essa luta é antiga, já foi enfrentada por muitas escritoras que hoje são referência da literatura, como Lélia Gonzalez, Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis e Conceição Evaristo. Mulheres negras que lutaram duas vezes mais para terem seus trabalhos validados. Lélia Gonzalez dedicou toda sua carreira às questões de genero e raça, foi professora e fez parte do Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM) nos anos 80. 
Carolina Maria de Jesus foi uma catadora de papelão, não teve muito estudo, porém o que aprendeu foi o suficiente para encantá-la com o mundo dos livros. Escrevia todas as noites em seu diário e lia tudo o que encontrava enquanto trabalhava. Sua obra de maior sucesso se chama "Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada", suas obras hoje são referência para quem estuda literatura de muheres negras.
Maria Firmino dos Reis atuou como professora e sempre teve gosto pela leitura. Sua vida foi dedicada a escrever e ensinar. Foi considerada a precursora do romance abolicionista.
Conceição Evaristo é formada em Letras, trabalhou como professora e só iniciou sua carreira na escrita nos anos 90. Tem publicações de gêneros variados, desde poesias, ficção, até ensaios. 
Mulheres com trajetórias impressionantes, porém tão pouco valorizadas. Muitas pessoas nunca ouviram falar de nehuma delas ou sequer conhecem os seus trabalhos. E, através desse fato, vemos como o mercado literário é dominado por brancos.

Autora
Em entrevista, a autora Camila Nunes, recentemente publicada pela editora PS: com o romance "Só de mentirinha", relata sua dificuldade de ingressar no mercado formal "É até curioso. Meu processo de publicação começa justamente por me sentir invalidada no mercado editorial. Fiz a inscrição em um bate-papo entre autores pretos, troquei experiências e dificuldades (no sentido de sentir que o tratamento era diferente entre os autores pretos e brancos), e assim conheci a minha agente, que me levou à primeira publicação tradicional."
Camila só conseguiu sua primeira publicação formal depois de fazer contato com autores negros que já estavam no meio. Essa rede de apoio que ela encontrou foi fundamental para o seu trabalho. 
Quando questionada sobre pessoas desacreditando seu trabalho, ela disse "As dificuldades vêm, principalmente, de acreditar em si. É difícil escrever sabendo que a maior parte dos autores grandes são brancos e/ou homens. Manter o ritmo de escrita estando tão desacreditada em uma possível publicação foi a parte mais dura."
Camila já escreve a cerca de dez anos. E, segundo ela, nunca passou pela fase de escrever e guardar para si, sempre quis compartilhar o que escrevia. Para sua formação enquanto escritora ela ressalta a falta de referências, "Ainda faz falta. Seguimos sem ter uma autora preta grande no nosso nicho de romances, que seja realmente validada pelo mercado tradicional."

Existem muitas barreiras entre escrever o livro e publicar. E a maior delas é encontrar agências que estejam dispostas a valorizar este trabalho.
"A minha agente, Suh Roman, prioriza autores pretos e deixou isso claro quando abriu a submissão de autores. Quando editoras e agências fazem isso, elas dizem priorizar minorias e, ainda assim, quando anunciam os resultados, eles são os mesmos: homem e mulheres brancos cis. Isso só aumenta as nossas inseguranças quanto ao que escrever, como, pra que público e afins."
Para aquelas meninas/mulheres que sonham em viver da escrita, Camilla ressalta que continuem escrevendo "Eu diria pra continuar escrevendo. Parece bobo, mas é muito fácil se sentir desmotivado quando ninguém está lendo o que você escreve. Acontece que sempre vai ter alguém interessado em te ler. Continuar escrevendo é fundamental. E se juntar com autores do seu nicho, tornar esse caminho menos solitário podendo trocar figurinha com pessoas que entendem como é difícil entrar no mercado editorial. É muito importante ter segurança no nosso trabalho, por mais complexo que seja!"

Incentivo 
Hoje existem muitas iniciativas de valorização da literatura feminina negra. Tem o Literafro, fruto de um grupo de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. O projeto Preta Poeta, que
 resgata produções de poetisas negras através de pesquisas, para difundir na sociedade em geral e atua também no incentivo à produção poética. O Sarau das Pretas e Lendo Mulheres negras são iniciativas que incentivam a leitura dessas mulheres invisibilizadas no mercado literário, buscando trazer para a sociedade o trabalho realizado por elas. 
E existem outros, basta uma busca rápida na internet para termos acesso. Esperamos que cada dia mais novas escritoras surjam, para mostrar que mulheres negras podem sim ser o que quiserem.

 

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