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17/07/2020 às 09h21min - Atualizada em 17/07/2020 às 08h25min

Caso Decotelli: reflexões sobre o racismo entre as ciências

Franciele Rodrigues - Editado por Bruna Araújo
El Pais Brasil

A passagem relâmpago e conflituosa de Carlos Alberto Decotelli pelo Ministério da Educação (MEC) levantou discussões sobre diversos assuntos, um deles foi o racismo no campo científico. Isto porque, segundo ele, um dos principais fatores que contribuiu para que não permanecesse no governo foi à discriminação racial. Para Decotelli, o racismo ocorreu já que outros membros da gestão Bolsonaro (Damares Alves, Ricardo Salles e seu antecessor, Abraham Weintraub, todos brancos, também apresentaram declarações improváveis – como títulos e cursos - em seus currículos e, ainda assim, continuaram em seus postos). A percepção é compartilhada com pesquisadores da questão étnico-racial, Silvio Almeida, um dos principais intelectuais que discutem o racismo no Brasil, disse em entrevista à Folha de São Paulo que “ele [Decotelli] não é o primeiro ministro que mente no currículo, mas foi tratado de maneira diferente”.

A filósofa Djamila Ribeiro seguiu a mesma perspectiva “é sempre importante frisar que estamos em lados opostos. É claro que a gente não apoia esse governo e tudo o que ele representa, porém não tem como a gente não observar que existem ministros que fraudaram também seus currículos e continuam ocupando seus cargos. Tem outro peso quando são homens brancos que fraudam e não há a mesma cobrança” declarou ao portal UOL.

Também o professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Ivan Salomão, em artigo intitulado “De títulos e raças”, publicado em 02 de julho de 2020 no Jornal Le Monde Diplomatique Brasil, argumentou que não desconsiderando as inconsistências identificadas em seu currículo, Decotelli foi submetido a linchamentos nas redes sociais. Na compreensão do docente, para entendermos as reações direcionadas ao (último) ex-ministro da Educação é preciso considerar que ele é negro, recorrendo as suas palavras “se Decotelli não foi humilhado, sobretudo, pelo fato de ser negro, eu teria dificuldades de imaginar outro motivo para a difamação desproporcional de que foi vítima” (JORNAL LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, 2020).

Buscando contribuir para esta discussão, ouvimos Tamara Vieira, negra, graduada em História e Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), possui mestrado em Ciências Sociais também pela UEL e, atualmente, é professora da educação básica no estado do Paraná. Para a profissional, existe racismo no campo científico e podemos identificá-lo, inicialmente, pela ausência de pesquisadores e docentes negros. 

“A quantidade de pesquisadores negros não representa nossa extensão na sociedade, o que nos leva ao entendimento do Ensino Superior enquanto privilégio e dificulta o debate sobre o racismo dentro deste espaço, pois a reflexão e o combate ao racismo significam lutar contra a naturalização de relações étnico-raciais que nos alheiam dos espaços, de direitos, em especial a garantia à vida, e ainda, nos leva a reprodução de papéis sociais, onde compete aos negros trabalhos braçais, ou, cultura e esporte, onde nossos corpos ainda constituem o instrumento de trabalho”, ela avalia.

No último dia 18 de junho, horas antes de deixar o posto de ministro da Educação, Weintraub extinguiu a portaria que destinava cotas para o ingresso de negros, indígenas e pessoas com deficiências em cursos de pós-graduação. Para abolir a medida, que ainda não havia sido implantada por todas as instituições de ensino superior no país, Weintraub não apresentou nenhuma justificativa. O ato foi criticado por diversos segmentos da sociedade como a Associação Nacional de Pós-Graduação (ANPG). Cinco dias após a publicação, em 23 de junho, o MEC revogou o decreto, o tornando sem efeito.

Para Vieira, o sistema de cotas para ingresso na graduação e pós-graduação compõe um amplo leque das ações afirmativas no Brasil, sendo que através dele é possível a inserção de novos sujeitos em um espaço que antes não tinham acesso [a universidade], permitindo, assim, certa correção da exclusão adotada até então, e rompendo com um mecanismo de privilégios. Segundo ela, a extinção da iniciativa representaria a interrupção da abertura do ensino superior a uma ampla parcela da sociedade, o que reforça o racismo como uma política de governo. A historiadora e cientista social também analisa a efetividade da ação no Paraná.

“A anulação da revogação do sistema de cotas na pós-graduação indica que não será tão simples restringir o acesso do negro à pós-graduação, mas ainda há muito a ser feito, em especial na pós-graduação, sei que a Universidade Federal do Paraná (UFPR) tem cotas, no estado não conheço mais nenhuma, a Universidade Estadual de Maringá (UEM) aprovou o sistema de cotas para a graduação no ano passado, a UEL adotou o sistema para a graduação no vestibular de 2005, mas ainda não inseriu na pós-graduação, por quê?”

Uma pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) publicada em junho de 2019 apontou que, entre 2012 e 2016, houve um aumento de 39% na presença de estudantes pretos, pardos e indígenas nas universidades federais. Neste mesmo sentido, dados divulgados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) indicaram que, apesar do aumento no número de mestrandos e doutorandos negros entre 2001 e 2013, que passou de 48 mil para 112 mil estudantes, este grupo étnico-racial ainda correspondia a pouco menos de 30% dos alunos que chegam aos cursos de pós-graduação no país.

Algumas medidas têm sido realizadas a fim de fiscalizar irregularidades no sistema de cotas. Na segunda-feira, 13 de julho, a Universidade do Estado de São Paulo (USP) e a Universidade de Brasília (UnB) expulsaram alunos que fraudaram o sistema de cotas. Na capital paulista, o estudante cursava Relações Internacionais e não conseguiu comprovar ter ascendência negra e nem pertencer à família de baixa renda. Em Brasília, 15 alunos foram expulsos, e mais dois egressos tiveram seus diplomas cassados.

Vieira pontua que em suas áreas de formação (História e Ciências Sociais) teve contato com pesquisadores negros através de disciplinas optativas e projetos de ensino, pesquisa e extensão, entretanto, ressalta que o conhecimento só foi possível por interessar-se pelas questões que envolvem as relações étnico-raciais. Em contexto mais amplo, ela analisa que, apesar do estabelecimento da Lei 10.639, de 2003, a qual dispõe sobre a obrigatoriedade da inclusão da temática “História e Cultura Afro-brasileira” na educação brasileira em seus diferentes níveis “autores negros não são constantes em nossas graduações, o que reflete uma característica nociva de nossa educação, o etnocentrismo, ou seja, a colonialidade do conhecimento, do poder, a nossa dificuldade em reconhecer as produções nacionais”, afirma.

Acerca do caso Decotelli, a pesquisadora considera que “não venho justificar a fraude, mas é preciso refletir que ele não foi o único a apresentar informações falsas em seu currículo, entretanto, foi o único que “caiu” por este motivo, entendo que um dos motivos de sua escolha, apesar dos arranjos políticos, estava relacionado com o seu “perfil técnico”, sem lastro político junto ao governo”.

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