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15/10/2020 às 05h41min - Atualizada em 15/10/2020 às 05h37min

Literatura marginal: a voz da resistência

A periferia ganha voz e força quando um dos seus chega ao topo.

Joyce Rosa da Silva - Editado por Bruna Araújo
A literatura marginal, ou periférica, é uma maneira de afrontar a literatura tradicional – livros que são recomendados do ensino básico ao superior por serem referências – ela é capaz de democratizar o acesso à arte fazendo com que surjam novas formas de manifestações artísticas. Removendo o conceito pronto e determinado de cultura, trazendo assim múltiplas, ou pluri, culturas.

Esta manifestação literária que teve seu nascimento dos guetos está ganhando cada vez mais espaço no Brasil, o que é uma atitude resistência, uma vez que ao ser produzida pelos mais variados tipos de pessoas, traz o registro espontâneo da linguagem, tornando a massa produtora e simultaneamente consumidora desse conteúdo.

E com essa democratização da literatura marginal, o jovem Lucas Alves, de 26 anos, pode conhecer obras onde se sentiu representado.

“Eu conheci a literatura marginal na periferia de São Paulo, mais precisamente no Capão Redondo, na loja do escritor Ferrez, o qual eu ainda não conhecia, porque até o momento só tinha contato com livros espíritas por conta da minha mãe ler muito, e foi através dele, toda vez que eu comprava uma roupa da 1DASUL, marca de periferia criada na periferia, que ganhava alguns livros da editora Selo Povo, que publica de maneira independente autoras e autores periféricos”.  

É através desse tipo de ação que a literatura marginal cresce e traz um novo perfil de leitor, que geralmente resiste à literatura imposta no ambiente escolar.

“Um dia comprei um livro do Ferrez, 'Capão Pecado', e peguei gosto por esse tipo de leitura, comecei a conhecer melhor e buscar mais livros, e desde então minha vida foi salva pela literatura marginal”.


(Capa do livro “Capão Pecado” retirada do Google)


O jovem de 26 anos, junto a um grupo de amigos, criou o projeto “Hip-Hop nas escolas” que leva o rap e a literatura marginal para as escolas de Sorocaba e Votorantim com a intenção de apresentar uma leitura onde os jovens possam se identificar com o conteúdo apresentado e assim ter uma porta de entrada para a leitura e para a construção do pensamento crítico.


“Os livros não atraem as pessoas com esses escritores 'ternos e gravatas', a literatura marginal aproxima os jovens, as pessoas da literatura, por não ser aquela literatura chata, que não fala a nossa língua. A literatura marginal é importante para que possam pegar gosto pela literatura, para que possam ter mais discernimento, senso crítico e ser salvo pela literatura, como eu fui.”


Ele também acrescentou:

“Foi transformador, porque eu nunca tive isso na escola, e a escola não mostra a verdadeira história do nosso país, e sempre dão literatura chatas, difíceis para os alunos e eles não pegam gosto nunca pela literatura. Foi mágico ver não só os alunos, mas também os professores se identificando com as escritas, os livros, a forma que são escritos e por quem são escritos, escritores que estão próximos de alguma forma. Não só os livros mais os quadrinhos também.”


Projeto “Hip-Hop nas escolas” em prática – Foto do acervo pessoal de Joyce Rosa



Exemplares que o projeto “Hip-Hop nas escolas” levam para as escolas – Foto do acervo pessoal de Joyce Rosa

Um dos livros que eles sempre recomendam aos alunos é o “Quarto de despejo – Diário de uma favelada”, de Carolina de Jesus.

“É difícil falar, mas Carolina Maria de Jesus mudou minha vida totalmente com a escrita dela, foi um soco no estômago, uma escritora que naquela época já retratava o machismo, o alcoolismo, as discriminações, a fome! O quanto a fome dói. Cada parte do diário faz a gente fechar o livro e repensar várias coisas, foi uma lição de vida para muitas coisas. Para ter mais gratidão, mais empatia pelo próximo, pela vida de forma geral.

Carolina Maria de Jesus

A arte surge nos lugares mais improváveis basta olharmos ao nosso redor sem as lentes do elitismo cultural. Carolina Maria de Jesus é a prova disso. Mulher, Negra, catadora de papel e favelada, nascida em 14 de março de 1914 na cidade de Sacramento, Minas Gerais, filha de pais analfabetos, teve uma infância turbulenta de maus-tratos em uma comunidade rural, onde pode frequentar a escola por dois anos, e neste curto período de tempo aprendeu a ler desenvolvendo o seu amor pela leitura.

Após o falecimento de seus pais em 1939, migrou para São Paulo. Desempregada e grávida aos 33 anos, construiu seu “puxadinho” na favela do Carindé, localizada na zona norte da grande capital paulista. Ela dividia o seu tempo entre trabalhar catando papel, e registrar o seu cotidiano na favela nos cadernos que encontrava pelas ruas. E foi em um desses cadernos que “Quarto de despejo - Diário de uma favelada” foi escrito, retratando a miséria, a solidão, a fome e dores de uma mulher preta e pobre. Ao ser publicada em 1960, após a autora ter sido descoberta pelo jornalista Audálio Dantas, a obra se tornou um best-seller, sendo vendida em 40 países e traduzida para 16 idiomas se tornando um marco da literatura marginal brasileira.

A escrita que era utilizada como forma de aliviar o estresse causado por uma vida atribulada, trouxe junto uma forte denúncia contra as mazelas, a ausência de solidariedade da favela, o descaso dos governantes, dentre tantos outros assuntos doloridos.

“Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito.”

E assim, nesse contexto, a literatura marginal se fez presente tendo uma função de denúncia, expondo realidades opressoras dentro dos conflitos humanos e das misérias sociais. Carolina sustentou sozinha três filhos mostrando a resistência da mulher dentro de uma realidade desfavorável.

“Em 1948, quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.”
Trecho do livro “Quarto de despejo – Diário de uma favelada”

E essa força avassaladora de uma mulher que resistiu aos paradigmas de seu tempo que incentivou uma campanha para que sua história seja retratada em uma série pelo canal de streaming Netflix.

A campanha foi idealizada por José Maria Fortes e Adson Santos. A ideia surgiu após a conclusão da leitura do “Quarto de Despejo” por José, uma vez, que o livrou despertou no mesmo diversas reflexões diante daquelas palavras tão contundentes e atuais, e a partir daquele momento surgiu a vontade que a escrita vivencial e testemunhal de Carolina fossem perpetuadas.

“Pesquisei em diversos sites e no YouTube a respeito de Carolina Maria de Jesus. Fui tomado por sentimento de revolta e indignação, pois grande parte do público jamais ouviu falar sobre a sua vida e manuscritos, sobretudo a persistência do anonimato que a elite brasileira a submeteu durante décadas", contou José.

A motivação para levar o projeto a diante é para que que a eventual produção da série ocupe diversas áreas da sociedade brasileira, acadêmica, política, social, civil, artística e midiática.

“O Brasil precisa se livrar urgentemente de suas retrógradas e negligentes narrativas que apagam a memória e história do seu povo. Não falo de uma memória europeia, mas sim uma memória histórica constituída do povo negro e indígena.”

Através da literatura marginal, moradores da periferia que se encontram as margens de uma sociedade que os excluem ganham voz de (r)existência, e encontram um lugar no qual têm vez.


 
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