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23/10/2020 às 02h11min - Atualizada em 23/10/2020 às 02h00min

“A literatura não chega aqui!”

Fatores sociais, culturais e econômicos influenciam o limitado acesso à literatura, mas o quadro é muito maior

Jéssica Meira - Editado por: Gustavo H Araújo
Reprodução: Pixabay

Quando penso no meu contato com a literatura, navego diretamente à minha infância, em que por vezes e longas horas eu me deixava levar pelas histórias tão magicamente instigantes; sentia-me distante de tudo, imersa em um novo mundo, onde eu poderia ser o que quisesse.
 

De princesa a leão, de heroína a bruxa má, eu desvendava mistérios com Lúcia Machado de Almeida em “O escaravelho do diabo”, ou mergulhava em uma bela aventura ao lado de Eduardo e Henrique em “A ilha perdida”. Obras maravilhosas de uma coleção que me apresentou a literatura: a “Coleção vagalume”, lançada em 1973, mantendo-se viva por tantos anos, alimentando a imaginação de milhares de crianças e adolescentes, inclusive a da repórter que assina essa matéria.
 

Com o passar dos anos, minha leitura foi tomando maturidade, assim como eu, transformando pequenos livros de histórias em obras mais profundas e complexas. Mas se tem uma coisa que não posso me esquecer, é que esse contato com a coleção inicial da minha infância veio através das tradicionais bibliotecas, recanto de olhos estudiosos, curiosos e tímidos, que enxergavam entre aquelas prateleiras a oportunidade de acessar uma mar de histórias, sem qualquer cobrança ou dificuldade. 
 

Me conte uma coisa, quantas vezes na sua vida você já frequentou uma biblioteca, não por obrigação, mas por puro prazer? Hoje em dia, posso dizer que essa resposta depende muito da sua idade e das influências que você teve ao longo da vida.
 

Um outro fator que influencia muito na procura por livros e no acesso a literatura de modo geral, é o poder aquisitivo do brasileiro. A média salarial, hoje, chega a um pouco mais de dois salários mínimos, ou seja, cerca de R$ 2.300,00, segundo dados da Catho veiculados pelo jornal Estado de Minas, isso se desconsiderarmos os estados com uma média inferior, como Piauí e outros. 
 

Se fizermos uma soma básica das despesas em nosso país a partir de uma família com pelo menos 2 filhos, que paga aluguel e vive uma vida estável, poderemos dizer que no final do mês os livros novos e a busca por acesso a literatura deixa de ser uma prioridade, tornando-se um luxo para tantos grupos familiares.
 

Se formos muito mais além, podemos voltar até a Revolução Industrial, no século XIX, na qual muitas famílias precisavam se adaptar a um estilo de vida mais cansativo, com rotinas de trabalho extensas chegando a 16 horas diárias e pagamentos baixos e injustos que os trabalhadores recebiam. Livros eram aquisições praticamente impensadas e o acesso a eles era restrito, seja para adultos ou crianças.
 

Lá na frente, com a ditadura brasileira em 1964, era a vez da censura derrubar o acesso da população à literatura, com muitas obras se tornando sinônimo de revolta, desobediência e crime em uma sociedade envenenada pelo medo e pela violência.
 

Muitos artistas e escritores foram censurados, cassados e repudiados nessa época. A população deixou de se informar com eficiência para ter acesso apenas a conteúdos liberados pelo governo. Os livros que antes já haviam sido confiscados e queimados durante o período da Segunda Guerra Mundial estavam correndo risco novamente. 

 

Para o Brasil, esses períodos de censura pesaram muito no mercado editorial - visto até os tempos de hoje. Diferente de outros países, por aqui a literatura mais acessível, ou seja, dentro das escolas, ainda se mantém em grande parte com obras antigas e tradicionais dos tempos de glória, em muitos casos são versões desatualizadas que, somadas a uma cultura de pouco ou nenhum contato com livros, acabam desmotivando as novas gerações. Tudo isso levando em consideração a pouca influência dentro de casa, onde nem mesmo os adultos mantêm um contato assertivo com os livros.
 

A pesquisa Retratos da leitura, importante medidor no hábito de leitura brasileiro, mostrou que entre 2015 e 2019 o Brasil perdeu cerca de 4,6 milhões de leitores. Coincidência ou não, no mesmo ano do crescimento do Spotify no Brasil e próximo a popularidade da Netflix, que surgiu em 2011.
 

Agora que provavelmente você entendeu o contexto da literatura e seus altos e baixos, imagine-se dentro de uma classe social diminuída, em um país onde tudo é muito caro e escasso para muita gente, com pouca ou nenhuma influência de leitura. Como o contato com a literatura poderia se dar? 
 

Hoje em dia, encontramos algumas iniciativas pelo país para levar livros a quem não tem acesso, como geladeiras de livros nas praças públicas, ações de doação para comunidades carentes e iniciativas que buscam ir muito além de manter esse contato, mas explorar a imaginação dos pequenos para, quem sabe, levar à ascenção jovens e potenciais escritores. Mas ainda assim, seu peso e força em escala nacional é fraco, quase nulo.
 

O que mais espanta é que todos os anos milhares de livros são descartados em todo o nosso país, sejam eles didáticos ou não. São páginas e mais páginas de livros que deixam de chegar às mãos da população, para se tornar parte de uma natureza doente.
 

O acesso a literatura é sim um problema nacional e de todos, mas junto com isso existem outros fatores que precisam ser pensados e resolvidos, como a cultura da ignorância em nosso país - que decaí ainda mais o mercado literário - o abandono de livros e a sua falta de circulação. Esses e outros sintomas tornam o cogitado descarte de quase 3 milhões de livros, no início deste ano, por parte do Ministério da Educação, algo comum e corriqueiro.

 

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