Lab Dicas Jornalismo Publicidade 728x90
01/05/2021 às 15h59min - Atualizada em 01/05/2021 às 15h49min

Cripface e Capacitismo

A falta de representatividade das pessoas com deficiência nas mídias

Thuany Cruz - labdicasjornalismo.com
divulgação
Atualmente cerca de 1 bilhão de pessoas tem alguma deficiência no mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 24% da população brasileira tem algum tipo de deficiência, o que representa mais de 45 milhões de pessoas. Desse número, quase 16 milhões têm deficiência grave ou gravíssima. Mas você já reparou que quase não se fala de pessoas com deficiência (PcD) nas mídias? E quando falam, os PcD’s sempre são mostrados como exemplo de superação, o que torna o conteúdo capacitista.

Outro exemplo são os conteúdos exibidos em novelas, filmes, séries, etc, com atores ou atrizes sem deficiência interpretando o papel de uma pessoa com deficiência. O nome dessa prática é Cripface, junção de crippled (sinônimo de disabled, pessoa com deficiência, em inglês) e face (rosto, face). Essa prática, além de tirar a oportunidade de emprego de um ator ou atriz PcD, tira a chance deles contarem a sua própria narrativa.

O exemplo mais recente de Cripface é o filme Music, produzido pela cantora Sia, que conta a história de uma garota autista, porém a atriz que interpreta o papel não é autista. Filmes assim apresentam um retrato estereotipado e superficial sobre PcD’s.

Para Maria Paula Vieira (@maaria_vieira), que é PcD, é sempre uma frustração, misturada com tristeza, ver conteúdos com Cripface:

 
“Primeiro, porque o mercado de trabalho, como um todo, exclui pessoas com deficiência. Quando se fala de arte, de expressão do próprio corpo, isso é ainda mais avassalador. Segundo, quando se fazem roteiros sem a consultoria da nossa vivência, o capacitismo aparece de forma ainda mais clara, com todo o estereótipo que a sociedade carrega sobre nós. É frustrante não pensarem em nós como artistas, é triste ver a nossa realidade sempre ser apagada. Eu sempre passo por capacitismo quando me encaixo em diversos perfis e papéis, mas eles não me chamam por "não ter acessibilidade" ou não ser "específica para diversidade". Ser descartada por uma característica física é sempre uma violência. Quando sou chamada para testes ou estou em gravação, costumo ser muito bem tratada, mas infelizmente, como citei acima, já passei por situações dos locais não terem sido bem preparados para mim em questão de acessibilidade".

Lutando diariamente para ganhar visibilidade nas mídias e contra o capacistimo, ela usa o Instagram para criar conteúdos sobre conscientização e inclusão:
 
“É uma luta cansativa, ainda mas quando minimizam nossas vivências, colocam como frescura, como mimimi. É sempre fácil quando não dói no outro o apagamento diário. Mas quando a gente fala de ser apagado na mídia, a gente fala também de falta de oportunidade no mercado de trabalho, a gente fala sobre ter seu corpo visto como improdutivo, como feio para aparecer, como uma vivência que não merece destaque porque é infeliz, toda uma rede capacitista de causas e consequências. O avanço das redes está contribuindo para que a gente possa se mostrar mais, mostrar nossa real vivência, informar as pessoas sobre elas, mas é preciso que as pessoas continuem e aumentem seu interesse em consumir nossos conteúdos e não somente da blogueira fitness padrão o tempo todo.”

O ator e cineasta, Victor Di Marco, passou a fazer sucesso no Instagram devido aos vídeos discutindo questões como capacitismo e os desafios vividos por pessoas com deficiência. Segundo Victor, em um IGTV publicado na sua conta pessoal do Instagram, “a representatividade no meio da arte é muito importante, pois a arte, muitas vezes, é o primeiro momento em que as pessoas conseguem se enxergar e ver uma possibilidade de felicidade”. Atores e atrizes PcD’s não precisam interpretar papéis que falem só sobre deficiência. Uma pessoa com deficiência precisa se ver sendo representada.

Para Vieira, crescer sem ser representada fez com que ela não se sentisse parte da sociedade e nem digna de usufruir de tudo que todos usufruíam:

 
"Eu ficava buscando e querendo me encaixar em um padrão irreal, infeliz por não ser parecida com as mulheres que eu via nos espaços. Se não fosse a minha base familiar, eles acreditarem e incentivarem as minhas capacidades, eu demoraria muito mais para descobrir que eu poderia ser o que eu quisesse".

Hoje em dia ela é atriz, jornalista, fotógrafa e modelo, porém ainda não se sente representada pelos conteúdos multimídias, mas ela enxerga uma luz em relação a anos atrás:
 
"Fico feliz também quando eu, hoje, também ocupo espaços e posso ser um símbolo de representatividade para outras meninas como eu fui um dia".

Em uma pesquisa realizada pela TODXS (estudo desenvolvido pela ONU Mulheres e pela Heads Propaganda, viabilizado pela Aliança Sem Estereótipos, movimento que visa conscientizar agências e anunciantes sobre a importância de eliminar os estereótipos nas campanhas publicitárias), em 2017, mostrou que a representatividade de pessoas com deficiência em comerciais brasileiros não chegou a 0,12%.

Segundo Paula:
“É triste que muitas empresas do mercado publicitário ainda contratem minorias somente para cumprir cota, passar uma boa imagem de diversidade, quando a fundo não se preocupam com isso. Eu mesma já fiz comerciais em que fica tudo lindo na televisão, mas nos bastidores eu estava passando dificuldade, estresse, porque não tinham feito o mínimo por mim: colocar acessibilidade no espaço. Minha mãe ou pessoas da equipe tinham que me subir de escada, me ajudar a ir ao banheiro, porque a empresa não pensou nisso ao me contratar. E isso mostra que faltam funcionários com deficiência no interno da empresa, em altos cargos, para que isso mude por completo de fato. É um avanço a gente estar nos espaços, mesmo que para cumprir cota, porque a gente pode questionar mais de perto, mas ainda precisa de muita mudança real”.

O Diversity and Social Change Initiative, em um estudo, analisou os 100 principais filmes lançados em 2015. O resultado encontrado mostra que o número de personagens com deficiência é de 2,4%.

A jornalista acredita que o motivo disso acontecer é o mesmo motivo do porquê PcD's ocupam somente 1,04% no mercado de trabalho: a crença de que pessoas com deficiência não são capazes, seja de produzir, trabalhar ou até mesmo viver:

 
"Somos pessoas ativas na sociedade, mas eu acredito que na mídia isso acontece também pelo fato de ainda focarem em padrão de beleza, biotipos específicos, e não acreditarem que corpos com deficiência são bonitos, atraentes".

Buscando mudar essa situação, surgiu a Aliança Global para Inclusão de Pessoas com Deficiência na Mídia e Entretenimento, lançada na Organização das Nações Unidas (ONU) em 2016. A iniciativa incentiva ações na mídia que promovam representações de pessoas com deficiência. O projeto foi baseado no Artigo 8 da Constituição dos Direitos Humanos, que acredita no poder da mídia como ferramenta de conscientização e inclusão.

Maria Vieira acredita que após a criação da Aliança as coisas começaram a evoluir no mercado da mídia e entretenimento para representatividade, e destaca que foi a partir de 2016 que começou a trabalhar mais como modelo e atriz:

 
“A gente não deveria precisar de leis ou iniciativas para que isso fosse promovido, deveria acontecer de forma natural e espontânea, mas infelizmente a sociedade não funciona assim e precisamos de alianças como essa para que a informação venha e mudanças comecem”.

Nas produções audiovisuais, personagens com deficiência sempre são resumidos a ela, e isso se torna o ponto alto do personagem, e ocorre desde o início da narrativa ou, a partir do momento que ele adquire essa deficiência. A modelo considera que esse estereótipo, no qual os PcD’s são pessoas infelizes ou exemplo de superação, precisa acabar:
 
"Nós somos pessoas, temos histórias vastas, diversas, para serem exploradas em roteiros ricos com narrativas muito mais sinceras, honestas e que mostram diversas realidades que nos englobam, ao invés de um enredo capacitista que segue perpetuando. Essa linha de um herói que vem sempre pra salvar a minoria acontece em muitos filmes, não somente com pessoas com deficiência, mas com pessoas pretas também. É um combate frequente à essa mensagem de que precisa ter uma pessoa, geralmente branca e sem deficiência, que resolve os problemas do personagem, como se ele fosse incapaz de fazer isso por conta própria".

Nos últimos anos passamos a ouvir mais sobre assuntos como inclusão e diversidade, porém pessoas com deficiência raramente são retratadas em situações de consumo, fazendo coisas do dia a dia ou se divertindo. O foco desses personagens, na maioria das vezes, está em suas relações afetivas e na superação das dificuldades que a deficiência traz, deixando de lado outras questões, que acabam ficando a cargo de outros personagens "perfeitos" e sem deficiências.

Essas representações reforçam a exclusão social vivenciada pelos PcD’s, segundo Maria:
“Todos somos criados em uma estrutura de preconceitos e muitas vezes não nos damos o trabalho de sair da nossa bolha, de conhecer outras realidades a fundo, buscando destruir tudo o que nos foi ensinado. As empresas vivem nessa estrutura e não buscam sair dela. Além de saber que muitas vezes é esse o roteiro que vende mesmo, que emociona, que alimenta a sociedade que também está criada nisso. As pessoas querem se inspirar e pensar que 'eu nem devia estar reclamando, podia ser pior', e geralmente o pior é ser uma pessoa com deficiência. Nisso entra o que nós chamamos de 'pornô inspiracional', que é justamente o prazer de ver essas histórias tristes que colocam da nossa vivência para dar prazer à própria vida, pensando dessa forma. Todo mundo compra ingresso para sentir que 'minha vida nem é tão ruim'. É disso que as empresas se alimentam, é mais fácil do que se aprofundar em narrativas novas e reais”.

Em um vídeo do Instagram, Mariana Torquato explica, por meio de "Star Wars", o que é capacitismo. Outro exemplo capacitista é o filme “Convenção das Bruxas” da produtora Warner Bros, no qual a bruxa principal apresenta má formação nas mãos. A deficiência não está nos cinemas, e quando está, ela é associada a bruxas ou vilões, por ainda ser vista como “um defeito, algo horroroso, que precisa de conserto”. Por essa razão, Vieira acha um absurdo ainda associarem corpos de pessoas com deficiência à defeitos físicos e de caráter como acontece nesses filmes, além de acabar atrapalhando a vida de quem tem esse tipo de má formação.

Alguns exemplos de Cripface em séries, novelas e filmes:
 
  • Na novela “América”, a atriz Bruna Marquezine interpretou a personagem com deficiência visual, “Maria Flor”;
  • Na série “Glee”, o personagem com deficiência física, “Artie”, era interpretado pelo ator Kevin McHale, uma pessoa sem deficiência;
  • No filme “Hoje eu quero voltar sozinho”, o personagem principal, “Leandro”, possui deficiência visual e o ator que interpreta o personagem é  Guilherme Lobo;
  • Na Malhação “Viva a Diferença”, a atriz Daphne Bozaski interpreta o papel da personagem autista, “Benê”;
  •  No filme “Milagre na cela 7” o personagem principal, “Memo”, é uma pessoa com deficiência intelectual, interpretado pelo ator Aras Bulut İynemli;
  • Na Malhação “Toda forma de amar”, a atriz Giovanna Rispoli interpretava a personagem com deficiência auditiva. “Milena”;
  • O filme “Como eu era antes de você” é outro exemplo, pois, além de apresentar Cripface, é super capacitista. Ele narra a história de Louisa Clark, que é contratada para ser cuidadora de Will, um jovem tetraplégico.
Segundo o site da revista "The Hollywood Reporter", a escolha do ator sem deficiência, Sam Claflin, gerou reações negativas no público, porém não foi apenas esse o erro do filme, na história. Will decide pelo suicídio assistido, mesmo com as tentativas de sua mãe e de Louisa em desestimulá-lo. Por conta disso, algumas pessoas protestaram no Twitter com a hashtag #MeBeforeEuthanasia (#ComoEuEraAntesDaEutanásia).

A autora do livro "Como eu era antes de você", Jojo Moyes, informou que se inspirou na história real de um jogador de rugby:
"Nós somos uma sociedade que julga muito e você nunca sabe realmente o que se passa na mente de alguém ou quais experiências ela teve para tomar essa decisão".

Conforme Paula, em um reels publicado em sua conta pessoal do Instagram, o filme não é um romance; é um insulto às pessoas com deficiência, pois o filme retrata a deficiência como uma tragédia, passando a mensagem de que é melhor uma pessoa morrer do que ser uma pessoa com deficiência. Na sinopse do filme, Will é descrito como “um jovem tetraplégico depressivo e cínico”.
  • Na série “The good doctor” o personagem principal, “Shaun”, tem autismo. Ele é interpretado pelo ator Freddie Highmore.
Para combater a “falta” de papéis de pessoas com deficiência no mercado audiovisual. é necessário informação. Precisamos começar a falar mais sobre, conscientizar, compartilhar e questionar. Segundo Maria Paula Vieira:
 
"É necessário que todo mundo questione a falta de papéis para pessoas com deficiência, cobre dos locais, espaços, do mercado audiovisual, como um todo, a necessidade de ter mais papéis, mais representatividade e espaço para pessoas com deficiência. Enquanto não há informação e questionamento, nada muda".  

Séries e filmes sem Cripface
 
  • O filme “Colegas” conta a história dos amigos Stallone, Aninha e Márcio, que vivem juntos em um instituto para portadores da síndrome de Down. Um dia, inspirados pelos filmes que assistem na videoteca local, resolvem fugir para realizar seus sonhos, roubando o carro do jardineiro.
  • Na novela “Páginas da Vida”, o sucesso da personagem Clara, uma criança com síndrome de Down, foi tão grande que ensejou a comercialização de uma linha de bonecas com as características da síndrome de Down. Os idealizadores da boneca disseram que foram rejeitados por vários fabricantes e ouviram comentários preconceituosos até encontrar um que estivesse disposto a comprar a ideia.
  • O filme “Viver duas vezes” aborda o avanço da doença de Alzheimer, em um professor de matemática de 70 anos que se vangloria do seu pensamento racional.
  • Na série “Special”, um jovem com paralisia cerebral abandona os tempos de isolamento em busca da vida que sempre quis.
  • No filme “37 segundos” a atriz Mei Kayama, que tem paralisia cerebral, interpreta a personagem “Yuma Takada”, uma talentosa artista presa em mundo de obrigações sociais e familiares, que decide embarcar em uma jornada em busca da sua liberdade pessoal e sexual.
  • Na série “Crisálida” você vai conhecer histórias de jovens deficientes auditivos que enfrentam os desafios de uma sociedade desenhada apenas para ouvintes. Cruzando narrativas e personagens, o objetivo da série é evidenciar como o contato com as Libras é o agente transformador em um universo visual.
  • Na novela “Água na boca”, a personagem “Joana” tem deficiência motora.
  • Na série “Speechless”, uma mãe apoia seu filho adolescente, cuja condição especial alimenta sua determinação de criar um lar saudável para todos os membros de sua família.
  • Na novela “Caras e bocas”, a personagem “Anita” tem deficiência visual.  
  • Alguns reality shows sobre Pcd’s: “Amor no Espectro” (2019) e “Além do Som” (2020), disponíveis na Netflix.
  • Documentários: “A Pessoa é Para o que Nasce” (2005) e “Meu Nome é Daniel” (2019), ambos da TVZero.
 
Consumir séries, filmes e documentários inclusivos é uma forma de apoiar a causa das pessoas com deficiência. A mídia tem grande influência no consumo e na cultura, por isso é necessário que as vivências das pessoas com deficiência estejam nela de forma real e com mais visibilidade. 

Link
Notícias Relacionadas »
Comentários »